quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Feelings



«Não raras são as ocasiões em que os sentimentos surgem dentro da cabeça ou debaixo das unhas, bem no centro do sabugo, formas impalpáveis, anjos brancos sem asas, negros andorinhões. Não os tocamos, não os vemos, quase não os sentimos. São objectos que ultrapassam o nosso coração para, rapidamente, se irem instalar no peito de outro alguém. São volúveis e insanos. Apesar de estarem dentro do crânio ou na génese das unhas que terminam os nossos dedos, eles partem para um lugar que não nos pertence, quantas vezes não nos entende e, pior, de que desconhecemos o paradeiro, o endereço, o código de acesso, a palavra passe. Tal e qual as células, as moléculas, os átomos que nos formam e estruturam, nos põem em pé e a andar, mas de que nunca questionamos a existência. Sentimentos inatos, genéticos, oferecidos, não adquiridos. Atingem-nos como balas por circunscrever, disparadas por armas impróprias, apontadas por mãos assassinas, rostos mascarados, provocando crimes imperdoáveis. tanto mais imperdoáveis quando no fim de penetrarem, rasgarem, dilacerarem a carne das unhas, as reviravoltas do crânio, o sabujo sujo do nosso querer, anjos negros, andorinhões invisíveis de tão brancos, o corpo permanece vivo apenas pela perversa alegria de nos ver de pé e a andar, obrigando-nos a constatar quão insuportável é existir sem ter segurado o sentimento que partiu mesmo agora. Para sempre.»

Naquela tarde, sem saber bem porquê, sentara-se num banco diferente do jardim. D. Aurora Figueiredo, a D. Aurita como era conhecida no bairro, sentia-se sentimental, o que a todos os níveis era considerado um pleonasmo. Tal facto incomodava-a, apesar de estar bom tempo, nem calor nem frio, céu azul, os patos mudos a nadar tranquilos no lago, e, poisado no banco a seu lado, um saco de ameixas maduras, fruta da época, compradas a menos de um euro. Um preço mesmo extraordinário!

jef, agosto 2017

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