quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Sobre a apresentação do livro «I Don’t Think So – Postais» de André Ruivo e João Eduardo Ferreira, A Morte do Artista, 2022. Feira da Festa da Ilustração, A Gráfica, Setúbal. Sábado, 29 de Outubro de 2022, 16h00.













Quando 15 textos curtos meus vêm, quatro anos depois, ilustrar 16 obras plásticas de André Ruivo nascidas para serem “postadas” no vazio da internet e que foram expostas na Casa da Cultura de Setúbal, em Novembro de 2018.

Renascimento feliz para estas imagens figurativamente abstractas criadas pelo André e que desafiaram a figurativa abstração da minha fantasia. Escrever sempre foi criar imagens codificadas sobre uma realidade que se transforma continuamente. E, através desse código narrativo e, digamos, definitivo, a escrita tende a impor uma predominância ou uma certa hegemonia estética. Quantas vezes falsa.

Quem terá nascido primeiro, o ovo ou a galinha? O pincel ou a pena? A imagem ou a ideia?

Quem leia estes desenhos ou observe estes pequenos contos que o diga.

Um livro onde as cores e os objectos são, naturalmente, muito importantes, porque físicos mas codificados nas diversas linguagens.

‘«O equilíbrio, em última análise, é a capacidade extrema de não se desequilibrar. É a busca eterna feita por dentro e por fora do corpo humano. É também a permanente fúria calma que invade os infinitos céus da astrofísica e as partículas mínimas da incerteza que fazem de Schrödinger um improvável gato quântico.» Assim pensa Anselmo, que tem grande queda para perseguir tal simetria, pois sabe que sobre um estado aparentemente harmonioso paira sempre o fantasma futuro do seu oposto – o desequilíbrio.’             

em «O Equilibrista»

jef, outubro 2022

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Sobre o livro «Lisboa Indo e Vindo» de Filomena Marona Beja. Parsifal, 2022.


 









A obra de Filomena Marona Beja é, acima de tudo, inclassificável por género literário. São livros sempre cronistas, sempre históricos, sempre geográficos.

Por sistema e estilo, existe nos seus livros uma ideia arquitectada como um plano urbanístico, uma planta onde implementar ruas e pelourinhos, uma espécie de arquivo romanceado onde são colocados esquiços de prédios, alçados, empenas, alicerces históricos, pormenores saídos de alguma esquina escondida, de algum jardim esquecido.

Também uma vocação social de acreditar no dia presente quando este entende e não esquece os dias passados que o construíram. Uma espécie de arquitectura onde as informações históricas se misturam com o diálogo directo, indirecto, o chiste, o apupo, a intervenção, o ponto de exclamação e o punho no ar. Nada de frases intercalares, nada de entre vírgulas, nada de dúbias interpretações.

Aqui, a vida reclama futuro, modernismo, uma actividade guerreira e planificada como nas obras pictóricas de Fernand Léger.

A História corre lesta e pragmática entre as histórias que sustentam os habitantes anónimos da cidade.

Aqui vamos encontrar a aturada pesquisa que a autora tem executado ao longo dos anos. 12 crónicas sobre e sob os passos de Lisboa. Eu preferia chamar-lhe contos dado o arco narrativo completo que elas desvendam, relembrando, sublinhando, comovendo sobre as históricas paisagens urbanas desta tão velha (e bela) cidade.

Marvila e o Poço do Bispo. As velhas livrarias da Baixa. A raiz e a foz do rio Tejo português. Os azulejos de Maria Keil e o Metropolitano. A cor das flores dos jacarandás. A velha história conventual do Hospital de São José. O ringue de patinagem do Jardim Zoológico. O cheiro adocicado e acre que percorria as ruas vindo da torrefacção do café. O Largo do Carmo e as suas revoluções e chafarizes. O Campo de Alvalade onde se passeava de burro a Rainha Santa Isabel e, mais tarde, um tal famoso barbeiro António que ali foi abrir um cabeleireiro unissexo. Também as futuristas demolições de Duarte Pacheco.

Na obra historicamente arquitectónica de Filomena Marona Beja faltavam estas crónicas-contos para nos fazer reviver uma Lisboa que, em parte, já não existe mas que nos faz desejar contemplar novamente a beleza das sete colinas que nos continuarão a acolher e deslumbrar.


jef, agosto 2022

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Sobre a apresentação do # 5 de «A Morte do Artista». Biblioteca Palácio Galveias, 22 de Outubro de 2022, 16h00. Lisboa.

 



















Para que não fiquem dúvidas, o editorial do #5 é muito pragmático:

«Nós, que somos politicamente concretos, na época do degelo, calçámos os pneus de chuva, tirámos a carta de condução para veículos anfíbios, vendámos os olhos para ver melhor o lado de dentro, e zarpámos por aí a fora, numa caravana dismórfica, feita de quem se queira juntar.

E, a partir de então, os verdadeiros e inconformados contestatários serão aqueles que, por teimosia ou hábito, insistem em circular sempre na mesma direção. Todo este processo, claro, provoca acidentes e vítimas morais. Se a regra é subverter as regras, todos têm eventualmente razão. Resta-nos escrever uma declaração amigável em versos alexandrinos (também pode ser uma declaração de amor!) e depois queimá-la como faziam os profetas da arte efémera.

Se formos muitos a acelerar em contramão, acabaremos por mudar o sentido do mundo.»

José Eduardo Agualusa é o nosso querido (e viajado continental) artista consagrado que nos entrega a história «A Ilha Submersa». Abílio de seu nome.

Pires Laranjeira enquadra a obra do autor de forma simples e completa. Com ele, compreendemos o país e a escrita de um dos autores mais importantes da língua portuguesa.

Dorit Zilberman relata uma viagem entre quatro paredes israelitas pois a pandemia resguardou, subtraindo, o mundo a essas duas almas que envelhecem amando.

Paulo Kellerman Faz-nos caminhar apena numa direcção mas que, por sinal e por fim, se contradiz nos opostos dos seus dois sentidos.

O poeta-músico, Luca Argel, serve-nos, entre os seus poemas, o poeta com batatas e molho de alcaparras. O Brasil fica órfão quando perde para sempre o número do telefone fixo.

Filomena Marona Beja escreve um conto através da sua escrita arquitectonicamente sintética sobre um caso de discriminação e perseguição social. Algures em Portugal. 

Ricardo Tiago Moura fala-nos poeticamente da contagem brutal do tempo que, no fundo, se restringe e contrai sobre a derradeira hora onde se encontram todos os logros.

Gaëlle Istanbul escreve sobre a finalidade cabal (talvez vã) do nascimento e do seu caminho retrógrado através das sombras do presente, até uma outra dimensão.

Amosse Mucavele reinventa o velho embuste matrimonial e a origem de uma certa mentira fronteiriça, também a dor dos cinéfilos.

Paola D’Agostino faz renascer a esperança na idade que conta. A Rita e a Senhora Dona Isabel, sua tia-avó, que se cansa de andar sempre bem-disposta.

Carolina Furtado Freitas conta a história de um livro escondido e de uma alma perseguida. As aves, guardado muito junto ao peito.

Cláudia Clemente conta a historia de um 5º Esquerdo e de quem lhe mora ao lado, incessante, inconstante, inconsequente. Revoltada.

João Vieira, entre didascália, relata a história de ELE ou ELA POR ELE em que de batom em riste ouve Marlene Dietrich: “Para onde vão todas as flores?”.

Vítor Encarnação descreve-nos as diversas dimensões de uma árvore: a memória, o trauma, o sonho, a quimera, a afronta, o medo…

Joel Neto redige um libelo pelos Açores, contra o isolamento, contra o nepotismo, contra o essa visão plastificada do luso paraíso. Um apelo talvez polémico, certamente urgente.

Inez Caria enche plasticamente o #5 da revista, do fanzine, do jornal, do pasquim, da revista com os seus desenhos recortados na abstracção figurativa que tem tanto de líquido quanto de hipnótico.

Por fim, em contramão, os artistas mais que moribundos, reunidos: Fernanda Cunha, Manuel Halpern, Paulo Romão Brás, também este que assina João Eduardo Ferreira, compõem o modo gráfico e reescrevem sobre a tragicomédia que é a via pública traçada por autoestradas e passadeiras de peões, pela travessia, pelo susto, pela contramão em movimento uniformemente acelerado.

E assim, de novo em Outubro, o mês do suave Outono luminoso, «A Morte do Artista» #5 será apresentada na Biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, no dia 22, pelas 16h00. Haverá drama, convívio, conversa, refrescos e biscoitos.

Apareçam!


jef, outubro 2022

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Sobre a cassete «Gravidade» dos Knok Knok, Base Recordings, 2021

 

 






2017 – 2021. Quatro anos depois, os Knok Knok apresentam uma nova cassete com o título «Gravidade». A capa é desenhada pela artista Yara Kono.

Se esta “electrónica” de Armando Teixeira tecida sobre a “acústica” de Duarte Cabaça poderia, à partida, sugerir o aprofundar de um mundo distante, onírico, futurista ligado à ficção científica cinematográfica, numa abstracção que nos levantaria os pés do chão em acto de imponderabilidade ‘gravidade zero’, a verdade é que o álbum intitula-se, bem pelo contrário, «Gravidade», ou seja, 9,8 multiplicado pela massa do corpo, se a estivermos a medir na superfície do planeta Terra.

Tudo isto para dizer que, por mais etérea que seja a índole a que se expõe esta música, Armando Teixeira e Duarte Cabaça não conseguem reprimir uma certa rebeldia, diria quase pueril, de subverter o cânone seriíssimo com que muitas vezes é olhada certa música electrónica.

Essa erudição apócrifa vem aqui prateada pela bola de espelhos, colorindo a pista de dança («Osso Rugoso»), ou até sublinhando certos sonhos infantis e aquáticos, quando as crianças ainda adormeciam depois de lerem os episódios das «Vinte Mil Léguas Submarinas» de Júlio Verne («Centopeia»).

A gravidade da Terra e a perfeita imperfeição humana contida na melhor acção lúdica musical.

Sugerem Armando Teixeira e Duarte Cabaça: de pés bem assentes num planeta defeituoso, esqueçam a memória musical do passado ou a sua expectativa futura. Usem a gravidade do som presente e divirtam-se enquanto é tempo!

 

jef, outubro 2022

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Sobre o livro «Shuggie Bain» de Douglas Stuart, Alfaguara, 2021. Tradução de Hugo Gonçalves.











Este é um livro importante. Um livro impressionante.

A história entre 1981 e 1989 da vida de Agnes Campbell Bain, dos seus três filhos, dos seus dois ou três maridos, das suas três moradas, da sua cerveja, do seu vodka, do seu pai, da sua mãe, dos amantes, das amigas e amigos, dos vizinhos.

A história dos arrabaldes de Glasgow, enterrados na poeira negra e na escória de carvão das minas abandonadas e do desemprego, também do alcoolismo crónico e insano, da solidão mortal e miserável, do abandono social, do absentismo escolar, da intolerância e perseguição primárias contra a diferença de género, orientação sexual ou diversidade religiosa.

A história do amor cabal e da ternura protectora de Shuggie Bain pela sua mãe. Esta, uma história contada entre 1981 e 1992.

A história de uma Escócia e de um Reino Unido ensombrados pela figura enteiriçada e déspota de Margaret Thatcher (1979-1990).

Afinal, a história de como um rapaz pode (mal) sobreviver à depressão social, ao preconceito, às eternas patadas da vida.

Um livro exemplar sobre como uma pobre sociedade pode (mal) sobreviver no interior de um país supostamente rico, evoluído e industrializado.

O primeiro livro de um autor onde a pieguice é absolutamente anulada pela contenção, pela dignidade e também pela direcção certeira de cada uma das descrições de cena. Tudo está lá ao mínimo pormenor sem que nós precisemos de o anotar na margem. Como no guião de cinema ou nas didascálias de uma peça de teatro.

Toda a minúcia descritiva é importante sem se tornar ostensiva, voyeurista ou mórbida. Tudo se deve a um desígnio narrativo e social. A um dever ternurento de justiça. A um comprometimento por um futuro melhor. Só nesse sentido, é um libelo político. Em todos os outros é um libelo pelo carinho familiar.

Um livro que me fez recordar “Tempos Difíceis” (1854), só que o impressionante realismo dos episódios narrados afastam-se totalmente do humor, ora sub-reptício ora descarado, de Charles Dickens.

Um livro exemplar que deve ser muito lido e por todos considerado.

Nota final em louvor à tradução de Hugo Gonçalves sobre um texto que reflecte um modo linguístico e cultural tão particular.


jef, outubro2022