domingo, 30 de outubro de 2016

Sobre o disco «A Mulher do Fim do Mundo»» de Elza Soares, Mais um Discos 2016



















Para certos padrões da cultura contemporânea, falamos de moral, este é um disco malcriado. Malcriado em termos musicais. Música que corre atrás de uma certa mulher que faz das coisas causas, uma mulher que se apelida do fim do mundo e que para o ano completará 80 anos. Uma mulher que grita. Então, a música malcriada deve segui-la, e seguir-lhe a vocação poética sobre a cidade mais dura, a violência doméstica, a violência social, também a amizade, o amor, o sexo, a solidão e o fim da vida. E o seu início. Tudo.

«Debaixo dessa terra Não me interessa O movimento Debaixo do cimento Não tenho pressa Não há quem queira dançar… Mas se eu me levantar…» (Dança)

«Levo Minha mãe Comigo Embora Se tenha ido
Levo Minha mãe Comigo talvez por sermos tão parecidos
Levo Minha mãe Comigo de um modo Que não sei dizer
Levo Minha mãe Comigo Pois deu-me Seu próprio ser »
(Comigo)

«Meu temporal me transforma em loba
Presa, você vai gemer
Feito um cordeiro entregue pra morte»
(Pra Fuder)

«Cadê meu celular? Eu vou ligar prum oito zero
E quando o Saramago chegar
Eu mostro o roxo no meu braço
Cê vai se arrepender de levantar
a mão pra mim.»
(Maria da Vila Matilde)

Uma das melhores peças da Música Popular Brasileira do ano. (Contudo, isto não é MPB!)
Produção difícil de Guilherme Kastrup e arranjos impossíveis de Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Campos para um disco que não se parece com nada.
Um disco clássico, inclassificável, barulhento, dissonante, terno, que comove as pedras.
Com violão, cuícas e bateria, com toada sinfónica do naipe de cordas; com samba agreste que lembra certas fúrias de Tom Waits; com jazz de fusão a sugerir o velho Hermeto Pascoal; com secção de sopros a arranhar o Funk; com loucuras que trazem o sintoma de um rock sinfónico, poético e teatral, longo e mascarado, que a crítica há muito arrumou como pobre e fora de moda.

Que a Mulher do fim do mundo, Elza Soares, viva para sempre. Assim!
                                                                                         
«Mulher do Fim do Mundo
Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé

Pirata e super-homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor

Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar

Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar

Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim
Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim

Até o fim eu vou cantar, eu quero cantar
Eu quero é cantar eu vou cantar até o fim
Eu vou cantar me deixem cantar até o fim.»

jef, outubro 2016

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Sobre o disco «You Want It Darker» de Leonard Cohen, Columbia / Sony 2016


Bird on a wire.
É a imagem, digamos, a ideia que tenho de Leonard Cohen. Simultaneamente, frágil e perene, constante mas instável.
Sempre o ouvi. Nem sempre o compreendi. «Songs from a Room» (1969) e «Songs of Love and Hate» (1971).
Ele persegue-me, e eu sigo-o, como acontece com Tom Waits, David Byrne ou Beck. Como nos livros, as carreiras longas de certos músicos confortam-me.
Depois veio «I’m Your Man» (1988) e «The Future» (1992) e a pop sintetizada e de fundo de boîte, cheiro a fumo, pares a dançar desleixados de sono. A bola de espelhos em roda lenta. Reapaixonei-me.
Depois Leonard Cohen chega aos oitenta anos. «Old Ideas» (2012) e «Popular Problems» (2014). As canções de amor e de ódio mantêm-se, a pop, os violinos, os coros, permanecem e transformam os problemas populares e as velhas ideias em canções de embalar, em valsas de judeu errante, em cantigas de charme fora de moda. Boas lamechices.
Em 2016, surge «You Want it Darker». As coisas não mudam de figura.
Talvez Leonard Cohen não mereça o prémio Nobel mas o Famous Blue Raincoat ainda faz de corta-vento. E eu gosto.





«I'm leaving the table / I'm out of the game / I don't know the people /
In your picture frame / If I ever loved you or no, no / It's a crying shame if I ever loved you / If I knew your name.

You don't need a lawyer / I'm not making a claim / You don't need to surrender / I'm not taking aim / I don't need a lover, no, no / The wretched beast is tame.
I don't need a lover / So blow out the flame.

There's nobody missing / There is no reward / Little by little / We're cutting the cord / We're spending the treasure, oh, no, no / That love cannot afford
I know you can feel it /The sweetness restored.

I don't need a reason / For what I became / I've got these excuses / They're tired and lame / I don't need a pardon, no, no, no, no, no / There's no one left to blame.

I'm leaving the table / I'm out of the game.»

jef, outubro 2016

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Na partícula do sono










Como se escutasse no eco esse perdão
O suspiro passado de um serão
A mão do sonho sobre o ombro
A sombra plena
E o calor do corpo a respirar.

A quebra serena da ausência
Na construção lenta de um escombro.

Durante a noite podemos então nós
Em certo sentido
Absolver a ruína
E reinventar o oceano
Película do sono universal
Que de memória já esquecida
Faz da luz a véspera do dia.

Sombra quieta no calor a respirar
Corpo suspenso que alheio
Fica guardado na palma de uma mão.
Essa mão plena sobre o ombro
Faz da noite sombra mais próxima
E do perdão o eco de um suspiro.

Está refeito o calor do universo
Na partícula de um serão.

jef, outubro 2016

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Sobre o filme «O Ornitólogo» de João Pedro Rodrigues, 2016






















Por algum rio acima.
São as falésias do rio Douro, o lado internacional, mas podiam ser as margens de um outro rio qualquer, não fossem as Ciconia nigra (cegonha-negra), os Neophron percnopterus (britango ou abutre do Egipto), os Gyps fulvus (grifo), as Aquila chrysaetos (águia-real).
«O Ornitólogo» é o filme de João Pedro Rodrigues esteticamente mais consistente. O realizador vai construindo, filme a filme, passo a passo, imagem a imagem, um dicionário de ideias muito próprio, colocando o abstracto ao lado do figurativo, identificando uma linguagem que será apenas sua. Isso não é para todos.
Em «A última vez que vi Macau» (2012) trouxe a abstracção da linguagem estética chinesa. Agora funde-a com as cores dos caretos mirandeses e multiplica a língua de Miranda com o latim. Traz a estranha e decrépita Via Sacra do Bussaco para perto das Amazonas e cola-as ao lado das imagens pagãs, voyeuristas, escatológicas, belas, com que o catolicismo enche o seu abecedário. Da vida secreta de Santo António ao estranho suplício de São Sebastião. Evoca a Tapada de Mafra e as serras de Montesinho. Coloca máscaras e sexualidades distintas entre antúrios vermelhos e rinocerontes embalsamados. O pecado, a culpa, o sacrifício, a redenção, também lá estão, e no centro. O sermão aos peixes também.
Parece que nada faz sentido. Mas o modo metafísico da estética, que é uma moral indistinta, resolve o problema.
Basta pensar na luz de Caravaggio, Rembrandt, Hopper, Mizoguchi ou Mishima. Também ela não faria sentido.


jef, outubro 2016

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Sobre o livro «Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher» de Stefan Zweig. Livraria Civilização, 8ª edição,1949. Tradução de Alice Ogando. Capa de Roberto Araújo.


















(a)
Eduardo Lourenço num recente Jornal de Letras diz:
«Sem um sublime filme de Max Ophüls o nome de Stefan Zweig talvez não dissesse grande coisa à jovem geração. Para a minha, o autor de Confusão de Sentimentos e Amok dizia de mais. Para a geração crítica que então, como é norma, separava sem complacências os vivos dos mortos, o pobre Stefan Zweig, puro produto da Viena misteriosa dos começos do século, tinha o pecado sem remissão de ser lido por toda a gente. A celebridade torna-o, entre nós, um autor maldito.»

O filme referido é «Carta de uma Desconhecida» que Max Ophüls realizou em 1948. Acrescentaria eu, humildemente, «O Medo» de Roberto Rossellini de 1954. Muitos outros filmes foram realizados à sombra das letras de Stefan Zweig. Os filmes são recordados, o autor das novelas não. Injustiça plena para quem realmente era lido por toda a gente! Quem não encontra nas estantes perdidas as edições da Livraria Civilização?
Felizmente a Assírio & Alvim, a Antígona e a Relógio d’Agua, voltaram a colocar o famoso-esquecido autor austríaco nas prateleiras.

Stefan Zweig pertencia à elite iluminada de uma Europa ecuménica e galante, culta, ávida pela novidade poética mas distraída perante a novidade política, digamos antes, fleumaticamente distante da intriga social e económica de um continente que germinava a crise como um furúnculo. E tal como muitos judeus ricos, Stefan Zweig não se sentia judeu, apenas europeu. E foi surpreendido.

(b)
«A maior parte das pessoas possui apenas uma imaginação fraca. O que não as fere directamente, enterrando-se-lhes como uma punhalada em pleno cérebro, não as chega a impressionar; porém, se diante dos seus olhos se produz qualquer coisa, mesmo de pouca importância, mas que esteja ao alcance da sua sensibilidade, imediatamente brota nelas uma paixão desmedida. Assim, com uma veemência imprópria e exagerada, essas pessoas compensam, de certo modo, o pouco interesse que têm pelos outros acontecimentos.»

Logo na primeira página, Stefan Zweig monta a estratégia desta novela de reflexos, olhares e confissões. Estamos na casa de espelhos de uma pequena pensão da Riviera burguesa. 1904. Todos os olhares se concentram à mesa da refeição. O mundo torna-se pequeno. E uma comensal deixa a família e evade-se com o seu jovem apaixonado.

Este é o caso que irá despoletar toda a história que é contada ao narrador que é igualmente o leitor, o juiz, o padre, o psicanalista. É necessário contar para ser julgado e compreendido, para libertar a pena, para ganhar a confiança, para matar o preconceito.

«Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher» reflecte esse extraordinário jogo de reflexos narrativos, de monólogos e ouvintes, de confissões e perdão, de rostos estáticos e mãos ávidas. Reflexos que a noite faz concentrarem-se a sobre o objecto observado.

Stefan Zweig tem, no fundo, horror ao preconceito, ao falso juízo que tolda a liberdade individual e leva os de pouca imaginação a exagerarem e, em última instância, a restringirem a liberdade colectiva.

(c)
«Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher» é um livro cheio de recantos misteriosos e Stefan Zweig escreve muito bem. Contudo, como refere Eduardo Lourenço, era lido por toda a gente. E, como muitos outros judeus, o autor foi derrotado por quem saiu derrotado na Grande Guerra. Causa essencial do estratégico esquecimento universal.
Dupla maldição!

(d)
Nota: a ilustração da capa desta edição é do artista modernista Roberto Araújo Pereira (1908-1969).


jef, outubro 2016

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Sobre a leitura de «A Liberdade de Pátio» de Mário De Carvalho, Porto Editora 2013














Sobre a leitura de «A Liberdade de Pátio» de Mário De Carvalho, Porto Editora 2013

Entender a leitura de Mário de Carvalho, em especial «A Liberdade de Pátio», é reflectir sobre o que nós, leitores, pretendemos da literatura. Coisa imprescindível para quem preenche parte do tempo com livros e, acima de tudo, se entretém a ler.

Tal como sucedeu em «O Homem do Turbante Verde» (2011), os sete contos do último livro publicado pelo autor estão divididos por estâncias. Desta feita, três: «Névoas», «Esgares», «Vincos». Pois coisas pouco definidas, difíceis de narrar a terceiros, imagens mais sentidas que digeridas, voláteis, efémeras. Uma subordem proposta para que possamos separar e juntar o que não existe, em jogo de peões, pedras e dados. A nosso bel-prazer. (a) o Realismo sem prefixos ou adjectivos serôdios e académicos; (b) a Liberdade limitada pelo pátio que o paradoxo lhe transmite; (c) o que na vida se torna Insólito e, por fim, (c) o Riso, sem o qual a percepção da realidade desvanece em insuportável tédio.

A literatura como deve ser é assim: íntegra, consciente do seu passado, extravagante, divertida e forte! Jamais modernista!

«A Liberdade de Pátio» e «O Homem do Turbante Verde e Outras Histórias» são fundamentais para nos conhecermos como leitores!

jef, novembro 2013 / outubro 2016

«O Homem do Turbante Verde e Outras Histórias», Caminho 2011

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

«Ai, que me dói o Poplíteo!»














«Ai, que me dói o Poplíteo!»
gemeu o Luís Miguel, após um agachamento menos ponderado.
Até o melhor dos mestres, o mais forte dos líderes, pode, a dado instante, avaliar de modo inconsequente o movimento muscular quando o pretende levar até ao limite da competição.
Assim gritaram os persas em fuga da peloponésia Maratón.
Assim foi o grito heróico daqueles que atravessavam o Mediterrâneo, temendo-o sem o temer, enfrentando o desgaste das fibras como se entregassem aos deuses a última sílaba da última elegia de Píndaro.
Assim gritou a nereida Tétis ao saber do calcanhar de seu filho, da desgraça por terras de Tróia.
Assim gritou Eneias quando daquela saiu e avistou Roma, ainda por inventar.
Assim fremiu o músculo escavado na diagonal sobre a tíbia quando, em razão menos ponderada, Luís Miguel se agachou perante a fúria de mais um compasso quaternário de Madonna:

« If we took a holiday / Took some time to celebrate / Just one day out of life / It would be, it would be so nice / Holiday Celebrate / Holiday Celebrate».

Logo tremeu o ígneo pelotão,
as cabeças baixas
as vestes em rasgos.
Logo, em coro, todos os ginastas gritaram,
atormentados por tão dramática lesão:
«Ai, que nos dói o Poplíteo!»

jef, outubro 2016

sobre o livro «A Lebre de Olhos de Âmbar – Uma Herança Escondida» de Edmund de Waal, Sextante 2012














[É bom não esquecer épocas, não esquecer histórias, não esquecer livros inesquecíveis. Não esquecer a nossa própria história. Eram dias cinzentos, de eleições europeias... Março de 2014.]

As lágrimas das coisas.
Neste tempo de carnavais tristes, muita chuva, orelhas moucas e falas curtas, termino a leitura de Edmund de Waal. Um livro que, certo dia, Rui Cardoso Martins me instigou a ler. Respiro fundo, o silêncio incha, releio as últimas páginas e digo para mim próprio que nunca o esquecerei. Há livros assim, que pedem mais de nós, mais consciência, mais tempo. Lágrimas também. Revejo as ilustrações que acompanham o decorrer dos capítulos e pergunto-me como é possível estar de novo a ler a mesma história. Estar de novo sem entender como é possível aquela lógica. Penso no presente e não no passado, ao dar conta de umas eleições europeias, muito próximas, agitadas por Marines Le Pens a ocidente, Auroras Douradas mais a leste, e pelo meio…
No final do livro, Viktor Ephrussi conta aos netos como Eneias chora ao ver retratada nas paredes de Cartago a perda irrecuperável da sua Troia. «Sunt lacrimae rerum», as lágrimas das coisas. Agora está refugiada em Inglaterra a velha colecção das 264 figurinhas japonesas em marfim e madeira polidos, meio-talismã, meio-berloque, meio-brinquedo – os netsuke –. Fora (dentro) da sua história natural, distante da sua identidade, sacada da sua casa, da sua vitrine.
Esta é a história de pequenos objectos tácteis, mas é sempre a mesma história, aquela contada de cor por Stefan Zweig, longe da pátria e das estantes; aquela que Amos Oz conta, também ela ilustrada por uma simples fotografia a meio de um livro de amor e de trevas. Edmund de Waal conta-nos como o tacto e a pele e os músculos podem sentir o esplendor e o estupor, a suavidade e a rugosidade de objectos que fazem parte da História da Arte e da Iniquidade Humanas.
Desta história irrecuperável não podemos escapar. O melhor é voltar a lê-la.

jef, março 2014 / outubro 2016

+
«O Mundo de Ontem» de Stefan Sweig, Civilização 1953
«Uma História de Amor e Trevas» de Amos Oz, Asa 2007

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Sobre o filme «Boi Neon» de Gabriel Mascaro, 2015


















O improvável não é o impossível. E a realidade nem sempre é plausível.
A narrativa tem truques, logo o cinema é o universo da astúcia.
Experimente-se olhar para o filme como Metáfora, Elegia, Apologia, Fábula ou Parábola.
A Bíblia está cheia delas, muitas inverosímeis. Talvez o facto a transforme num objecto tão especial.
«Boi Neon» parece saído de um conto bíblico onde todos os passos se conjugam para nos levar a uma síntese moral: «A Resistência pela Felicidade».
E se o espectador notar incoerências, estranheza, perplexidades, das duas uma: ou não gosta de ouvir e ver histórias bem contadas ou esbarra em algum preconceito.
Estrategicamente, este filme sobre pessoas felizes é colocado num cenário que pode ser julgado «infeliz». O ambiente será «sujo» mas a fotografia é ímpar e límpida, a ser contemplada fotograma a fotograma. A vasta paisagem da floresta brasileira é interrompida por ilhas de tecnologia inoxidável. A «noite americana» é revestida de néons e dejectos de bovinos. O olhar triste dos animais é captado pela alegria colorida das cuecas fio-dental... Uma estratégia estética de arriscado equilíbrio, mas equilibrada.
Um filme que pode ser tomado por absurdo. Mas atenção, a realidade está a transbordar de absurdos e nem sempre tão bonitos como «Boi Neon». O final feliz é de uma beleza improvável mas felizmente possível.
Como gostamos nós de ouvir histórias incríveis, e belas.
E, já agora, é mesmo necessário resistir para ser-se feliz!

jef, outubro 2016

«Boi Néon» de Gabriel Mascaro. Com Juliano Cazarré, Maeve Jinkings, Josinaldo Alves, Vinicius de Oliveira, Samya De Lavor, Alyne Santana. Brasil / Espanha / Holanda / Uruguai, 2015, Cores, 101 min.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Sobre o filme «A Rapariga no Comboio» de Tate Taylor, 2016


















O que me terá irritado neste filme?

Não foi a banda sonora do grande Danny Elfman com um tema surpreendente a cativar o espectador e a deixá-lo preso à cadeira até ao final do genérico.
Também não terá sido o esforço considerável de Emily Blunt para dar corpo a uma invariável personagem retratada como a vítima invariável à beira do sacrifício.
Não será a fotografia limpa e luminosa sem rasto de mácula ou penumbra (Charlotte Bruus), fazendo da imagem olhada do caminho-de-ferro que vai até Nova Iorque pela costa, um eterno souvenir mas sem neve artificial a cair.
Não será propriamente a intriga policial onde tudo, já o sabíamos, se vai encaixando na perfeição, como naqueles romances enormes (Paula Hawkins), contemporâneos, todos-iguais-uns-aos-outros, que são arrastados pelos bancos dos comboios. Comboios que não chegam a Nova Iorque.

Com certeza que não terão sido os belíssimos rostos das actrizes que concedem alguns trechos de boa representação: Emily Blunt (Rachel) – Haley Bennett (Megan) – Rebecca Ferguson (Anna).

Talvez seja sim a comiseração piedosa, quase maçónica pelo feminino, fazendo do género uma causa pelo inelutável e da mulher uma coisa alienígena, fora do mundo real e da boa ficção.

jef, outubro 2016

«A Rapariga no Comboio» (The Girl on the Train) de Tate Taylor. Com Emily Blunt, Haley Bennett, Rebecca Ferguson, Luke Evans, Justin Theroux, Edgar Ramírez. EUA, 2016, Cores, 105 min.

«Neo-Realismo: da Arte e da Razão». Sobre a leitura de «Barco sem Âncora» de José Loureiro Botas, Portugália Editora 1963













Sobre a leitura de «Barco sem Âncora» de José Loureiro Botas, colecção O Livro de Bolso n.º 44, Portugália Editora 1963.

[Vem o presente texto a propósito do esquecimento do neo-realismo e de um certo «desprezo sobranceiro» que a crítica parece derramar sobre os seus autores. Da série «Neo-Realismo: da Arte e da Razão».]

O que farão os livros para serem esquecidos?
Quem ler estes contos dificilmente passará ao lado das alegrias e das dores das gentes da beira-mar de Vieira de Leiria. Por ventura, o vigor social fará esquecer o modo hábil, melodramático, operático, com que José Loureiro Botas arrasta o leitor através da geografia de um povo. Quando escreve: «Fala Zé Catrau, pescador», o autor devolve o discurso directo à realidade e oferece-lhe a bela fórmula cronista, tão velha quanto contemporânea. Os diálogos e os quadros paisagísticos são agilíssimos, as narrativas de comoção romântica e o conto visivelmente autobiográfico com que encerra o livro, «A Mãe», abre todo o poder afectivo do autor à profundidade da memória. (A capa é bela e da autoria de João da Câmara Leme).

Há livros que não foram feitos para serem esquecidos!
(1) Como não conhecer José Loureiro Botas?
(2) Por que continuarão a negar o valor certo ao neo-realismo? Não residirá nele influência bastante para autores presentes como Mário de Carvalho, Rui Cardoso Martins, Mia Couto, Lídia Jorge, José Eduardo Agualusa, David Machado, Valter Hugo Mãe, Afonso Cruz, Pepeteta, Ana Margarida de Carvalho…?

jef, novembro 2014 / outubro 2016

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Sobre o livro «O Deserto dos Tártaros» de Dino Buzzati, Cavalo de Ferro 2008


















Dizem que não há muitos temas para a literatura. A Morte e a Guerra, seguramente. A Solidão, se quisermos acertar em 99% da crítica.
Pouco mais.
Enfim, depois temos «A Cidade e as Serras»... Irreverentemente luminoso mas publicado no início do século passado, após a morte do autor.

«O Deserto dos Tártaros» tem o condão de colocar a Morte, a Guerra e a Solidão em pé de igualdade e no interior do labirinto do tempo, condensando a humanidade num átomo apenas:
“O que fizemos com o tempo que nos foi já concedido, o que faremos com o restante, sabendo que o que ficou para trás vai sempre aumentando e o que virá será sempre mais curto?”
E tendo a certeza de que a linha do tempo não é rectilínea, nem sequer curva, é mesmo labiríntica.

O jovem tenente Giovanni Drogo sai de casa da família quando é colocado, numa manhã de Setembro, na Fortaleza Bastiani. Decrépita fortificação castrense esquecida entre a vida influente da cidade e o deserto dos tártaros. Será apenas mais um dia da sua juventude a ser vivido.

Mas a Fortaleza Bastiani é um labirinto estranho, digamos «Escheriano», onde o velho passado vive apaixonado pelo futuro, mas onde muito pouco acontece. Apenas as circunstâncias condicionantes e as escolhas duvidosas podem indicar a saída e a alteração de um «destino».

Este é um livro sobre a capacidade de decidir face ao correr do tempo, de segurar o que não é tangível, de conquistar o imprescindível, de nos aproximarmos da metafísica.

«O Deserto dos Tártaros» é, acima de tudo, um livro sobre a Liberdade. Sobre essa faculdade, quantas vezes existencial, de que Mário de Carvalho nos fala num dos mais assombrosos contos da literatura universal. «A Liberdade de Pátio».

Nota: num livro desta dimensão temporal, geográfica e arquitectónica, a revisão deveria ter sido mais aturada e a tradução mais ponderada.

jef, outubro 2016

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Sobre o livro «O Torcicologologista, Excelência» de Gonçalo M. Tavares, Caminho 2015.

A escrita de Gonçalo M. Tavares organiza as ideias. É sabido.
Dá corpo a essas ideias. Lembra que vêm de algum lugar, de algum tempo. E que o corpo, o nosso, também não nos chegou por geração espontânea ou criação. Mas que não resiste sem criatividade. A ela deve ele o futuro.
A ideia e o corpo não estão sós no mundo.
Aliás, como nós [corpo / ideia] também não estamos sós do mundo, por mais que, por vezes, isso nos estranhe.
Há sempre um antes, um depois, um acima, um abaixo, um melhor, um pior, um maior, um menor…
A organização do corpo das ideias segundo o autor demonstra que ela se procede através de catalogação, silogismos, interpretação de sinais, resolução da linguagem. A do interior de cada um de nós e aquela que serve para dialogar com os outros. 
O diálogo em Gonçalo M. Tavares é essencial. Revela que existe múltiplas organizações. Enfim, um sistema múltiplo e democrático.

O Caderno 36 da sua Biblioteca é composto por dois textos dirigidos para o teatro, logo ao diálogo. É um veículo da compreensão (entendimento + integração) e contém dois capítulos: 1. Diálogos; 2. Cidade. Este último, com 19 páginas, dedicado à gestão urbana do silêncio. O diálogo com sinal negativo.

O primeiro, o corpo maior do livro, respeita o discurso partilhado entre duas corteses, delicadas, cerimoniosas, Excelências. Em palco, em confronto de palavras, em movimento constante. Com didascálias e tudo o resto.

Nunca o discurso do autor assumiu um ponto tão alto de humor. Um humor brilhantíssimo! Um humor excelentíssimo!

«O Torcicologologista, Excelência» é um livro bonito, divertido, sensato e absurdo, infantil e adulto! Apetece lê-lo em voz alta, para os outros. Lê-lo ao serão. 

E que família (em corpo e ideia) se prepare!

jef, outubro 2016