Para certos padrões da cultura
contemporânea, falamos de moral, este é um disco malcriado. Malcriado em termos
musicais. Música que corre atrás de uma certa mulher que faz das coisas causas, uma mulher que
se apelida do fim do mundo e que para o ano completará 80 anos. Uma mulher que grita. Então, a música
malcriada deve segui-la, e seguir-lhe a vocação poética sobre a cidade mais
dura, a violência doméstica, a violência social, também a amizade, o amor, o sexo,
a solidão e o fim da vida. E o seu início. Tudo.
«Debaixo dessa terra Não me interessa
O movimento Debaixo do cimento Não tenho pressa Não há quem queira dançar… Mas
se eu me levantar…» (Dança)
«Levo Minha mãe Comigo Embora Se tenha
ido
Levo Minha mãe Comigo talvez por
sermos tão parecidos
Levo Minha mãe Comigo de um modo Que
não sei dizer
Levo Minha mãe Comigo Pois deu-me Seu
próprio ser »
(Comigo)
«Meu temporal me transforma em loba
Presa, você vai gemer
Feito um cordeiro entregue pra morte»
(Pra Fuder)
«Cadê meu celular? Eu vou ligar prum
oito zero
E quando o Saramago chegar
Eu mostro o roxo no meu braço
Cê vai se arrepender de levantar
a mão pra mim.»
(Maria da Vila Matilde)
Uma das melhores peças da Música
Popular Brasileira do ano. (Contudo, isto não é MPB!)
Produção difícil de Guilherme Kastrup
e arranjos impossíveis de Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Campos para um disco que não se parece com nada.
Um disco clássico, inclassificável, barulhento,
dissonante, terno, que comove as pedras.
Com violão, cuícas e bateria, com toada
sinfónica do naipe de cordas; com samba agreste que lembra certas fúrias de Tom
Waits; com jazz de fusão a sugerir o velho Hermeto Pascoal; com secção de
sopros a arranhar o Funk; com loucuras que trazem o sintoma de um rock
sinfónico, poético e teatral, longo e mascarado, que a crítica há muito arrumou
como pobre e fora de moda.
Que a Mulher do fim do mundo, Elza
Soares, viva para sempre. Assim!
«Mulher do Fim do Mundo
Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé
Pirata e super-homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor
Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar
Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim
Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar, eu quero cantar
Eu quero é cantar eu vou cantar até o fim
Eu vou cantar me deixem cantar até o fim.»
jef, outubro 2016