quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Sobre o filme «Os Miseráveis» de Ladj Ly, 2019
















Há muito que um filme de acção não me punha os nervos em franja como este.

Aos subúrbios de Paris, em Montfermeil, onde convergem (ou divergem) raças, credos e culturas, chega o polícia Stéphane Ruiz (Damien Bonnard) para integrar a brigada anti-crime liderada por Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djebril Zonga), veteranos no controlo do crime através de métodos menos ortodoxos e negociações pouco éticas entre grupos rivais. Numa certa manhã de mercado, um pequeno leão é roubado de um circo de ciganos e um drone vigilante filma a acção da polícia.

A primeira longa-metragem do realizador francês de origem maliana, Ladj Ly, vem lembrar os confrontos violentos há uns anos, nos arredores de Paris, e até pode ser criticado por usar todos os estereótipos sociais e raciais do “bom ladrão” e do “mau polícia” (e todos sabemos como, hoje em dia, é perigoso embandeirar em fórmulas sociais tantas vezes baseadas no preconceito ou provocando preconceitos), mas «Os Miseráveis» tem um tal poder narrativo na montagem das cenas e na composição das personagens, provocando um suspense em crescendo, cena a cena, que deixa o espectador literalmente em palpos de aranha.

Um filme a homenagear (e a fazer ler) «Os Miseráveis» de Victor Hugo que, diz-se no filme, por ali viveu.

jef, fevereiro 2020

«Os Miseráveis» (Les Misérables) de Ladj Ly. Com Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga, Issa Perica,Al-Hassan Ly, Steve Tientcheu, Almamy Kanoute, Jeanne Balibar. França, 2019, Cores, 102 min.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Sobre o livro «O Caminho da Glória» de Alexandre Kuprine. Novelas "Inquérito", 1942. Tradução de Remédios de Bettencourt.















Quando as novelas faziam a grata tarefa que hoje é realizada por ecrãs de telemóvel e novelas televisivas às seis da tarde... Ressalvando as devidas e reconhecidas vantagens cognitivas para o acto da leitura!

No século XIX, Nicolau Arkadievitch conclui na cidade os estudos em Agricultura e é colocado numa aldeia situada algures no nenhures russo. Sem grandes distracções tenta o teatro amador mas sem grande sucesso, excepto o das gargalhadas nas cenas mais dramáticas. É aí que encontra Lídia Mikailovna, aliás Lidochka, jovem burguesa, filha de juiz, que, atraída irremediavelmente pela glória dos aplausos e do palco, tenta em Moscovo a arte da declamação junto do famoso actor jubilado Slavinsky que lhe tenta abrir os olhos dizendo que o futuro mais provável será mesmo o do teatro ambulante, paupérrimo e decadente. Lindochka não quer saber e insiste na arte dramática, separando-se então de Nicolau que julga amá-la. Anos mais tarde reencontram-se…

E, pronto, fica tudo dito. Não há volta a dar… as companhias de teatro são perversas, levando os actores desgraçadamente para a má vida e atraindo somente como espectadores hussardos mal-educados, bêbados poltrões e gente de má catadura.

Felizmente que guardo na memória a imagem do teatro venerado, elevado ao estatuto de educador maior do povo, abolindo barreiras, banindo tradições, de «O Conto dos Crisântemos Tardios» de Kenji Mizoguchi (1939).

jef, fevereiro 2020

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Sobre o filme «Bacurau» de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, 2019















Um dos filmes do ano.
Um filme que me explica por que tanto gosto de «Sacanas sem Lei» (2009) ou «Django Libertado» (2012) de Quentin Tarantino, e não aderi assim tanto à famosa comédia «Parasitas» de Bong Joon-ho (2019).

Num futuro próximo, algures no Sertão brasileiro, filmado nas terras amplas do Rio Grande do Norte, Teresa (Bárbara Colen) regressa a Bacurau para o funeral de sua avó, D. Carmelita, 94 anos, amada pela família e pelo povo. Teresa chega à boleia de um camião cisterna cheio de água potável pois o perfeito prefere a campanha eleitoral à distribuição pública de água. Um camião com caixões virado na estrada é o primeiro fenómeno que Teresa estranha. Um pequeno disco voador sobrevoa a pacata aldeia que aposta mais na biblioteca pública e no ensino das crianças, na alegria dos psicotrópicos, nos serviços sexuais e nos cuidados médicos administrados por uma médica que nunca se ri, a Dr.ª Domingas – a extraordinária Sônia Braga! Tudo começa a descambar quando surgem dois motares sinistros, encapuçados pelos seus capacetes, e resolvem tomar uma cerveja na tasca da vila que nem sequer se encontra no mapa.

Aí, o sangue jorra, as cabeças saltam, nem as crianças são poupadas, numa comédia política, louca, despudorada, tão séria quanto o riso que me fez soltar. Nada ali falta, excepto a água potável!

jef, fevereiro 2020

«Bacurau» de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho. Com Bárbara Colen, Thomas Aquino, Silvero Pereira, Sônia Braga, Udo Kier, Alli Willow, Karine Teles, Antonio Saboia, Jonny Mars. Música: Tomaz Alves Souza e Mateus Alves. França / Brasil, 2019, Cores, 131 min.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Sobre o livro «Apuros de Um Pessimista em Fuga» de Mário de Carvalho. Caminho, 1999













Eis um livro a que sempre volto, por razões várias, e que colecciono na estante da minha “biblioteca dos pequenos livros”. Uma das novelas de Mário de Carvalho de que mais gosto e que, ao longo do tempo, me faz crer que a eternidade de um texto reside tanto no apuro sintáctico, na beleza semântica, nesse modo divertido de irmos atrás de vocábulos invulgares, como no lastro que ele deixa na memória do nosso quotidiano.

Quero dizer que certos livros, como este, fazem-nos compreender o próprio dia-a-dia pois, na sua arqueologia profunda, o guardam lá dentro. Explicam-nos como a cidade de Lisboa se distribui vagueando na geografia que as ruas cravam na nossa mnemónica urbana. Executam um princípio fundamental que diz ser a ficção o melhor aliado emocional da História, a melhor tabela para o seu mais íntimo entendimento. Finalmente, acalmam-nos na nossa mais arreigada, e tantas vezes injustificada, descrença pessimista no dia que vem aí. A melhor ficção está sempre, no presente, a dizer-nos que a insegurança que a sociedade nos coloca dentro do nosso coração pré-deprimido deve ser combatida, pois o curso livre das ideias, a circulação democrática na cidade, a solidariedade pela opinião contrária, são fundamentos legados pelo 25 de Abril e de que jamais poderemos abrir mão.

jef, fevereiro 2020

Nota. Esta novela está actualmente editada na Porto Editora em conjunto com outros dois textos imprescindíveis para compreender a diversidade narrativa em Mário de Carvalho: «Quatrocentos Mil Sestércios» e «O Conde Jano».

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Sobre o filme «A Vida Invisível» de Karim Aïnouz, 2019





















Este melodrama "tropical", segundo o seu realizador, Karim Aïnouz, é deveras interessante! Conta a história a partir do romance de Martha Batalha e teve a atenção especial «Un Certain Regard» de Cannes.

Na década de 1950, duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), são separadas durante a alma e o corpo da sua juventude. Uma parte para uma hipotética Grécia. A outra, para uma putativa Viena, Áustria. O filme conta a história dessa separação, dessa saudade, através de um Rio de Janeiro opressivo de calor e preconceitos, no declive dos bairros cariocas ou entre a vegetação dos morros atlânticos. Não teme o suor ou o sangue, o sexo como estrutura paralela ao drama. Talvez risível. Os corpos desejados ou amedrontados, conquistados ou cedidos, contêm o próprio cerne da saga familiar, baseada em duas mulheres que não se vergam e nunca choram.

Se na estafada rotina da telenovela, o teatro sucumbe ao esgar apalhaçado de expressionismo cosmético, em «A Vida Invisível» a técnica dramática é extraordinariamente clara: o espectador é que tem de receber a lágrima, o pathos, numa circunstância narrativa de romance oitocentista. O espectador vê-se obrigado a aguardar o ápice emocional.

E no final, esse climax está nas mãos e no corpo, no rosto, soberbos, da enorme Fernanda Montenegro! Viva o teatro!

jef, fevereiro 2020

«A Vida Invisível» de Karim Aïnouz. Com Julia Stockler, Carol Duarte, Flávia Gusmão. Com Julia Stockler, Carol Duarte, Flávia Gusmão, Fernanda Montenegro, Gregório Duvivier, António Fonseca, Flávia Gusmão, Cristina Pereira. Segundo o romance «A Vida Invisível de Eurídice Gusmão» de Martha Batalha. Brasil / Alemanha, 2019, Cores, 139 min.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Sobre o filme «O Farol» de Robert Eggers, 2019

















Este é o filme de que se fala e que esgota a sala em que é exibido, juntando público dos 14 aos 80, num estado de ansiosa expectativa… Não é comum…

Não será necessário vislumbrar a piscadela de olho ao expressionismo mudo de Buñuel, Murnau ou Eisenstein, a tensão de Hitckcock, as insanas obsessões de Ahab, de Melville, os fígados de Prometeu agrilhoado, para dizer, como o outro, tanto barulho por nada…

A fotografia a preto e branco (Jarin Blaschke) em jeito “35 mm” sob uma banda sonora em alto e bom som “mecânico”, vindo das tempestades do oceano, da casa das máquinas do farol ou do velho casebre que aos poucos se desfaz, constrói parte grande do “mistério” do filme. A música de Mark Korven completa o círculo.

Mas o barulho que se faz pelo filme tem alguma razão de ser, sobrepondo-se mesmo à respectiva banda sonora. A dupla faroleiro Thomas Wake (Willem Dafoe) e o seu servente-oficial Ephraim Winslow (Robert Pattinson) merece séria atenção. O diálogo realizado num espaço claustrofóbico, entre escadas estreitas, soalhos apodrecidos, sujidade em crescendo, covas abertas para vivos-mortos, é muitas vezes concluído com um arremedo de “comédia de costumes” que nos leva ao sorriso. Um ponto a favor do filme que mostra como Willem Dafoe é um grande mestre da comédia e da tragédia e Robert Pattinson, um partenaire à altura.

Dispensar-se-iam as imagens, obtusamente líricas, da pequena sereia …

jef, fevereiro 2020

«O Farol» (The Lighthouse) de Robert Eggers. Robert Pattinson, Willem Dafoe, Valeriia Karaman, Logan Hawkes, Kyla Nicolle. Argumento: Robert Eggers
Max Eggers. Música: Mark Korven. Fotografia: Jarin Blaschke. Canadá / EUA, 2019, Cores, 109 min.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Sobre o filme «Mulherzinhas» de Greta Gerwig, 2019
















Existe neste requintado e exuberante «Mulherzinhas» um extraordinário “savoir-faire” da realizadora Greta Gerwig.

Aqui se faz a apologia do romance de Louisa May Alcott (1868), tantas vezes preterido, por delicodoce, às grandes sagas americanas agrestes e violentas.

Aqui se faz a reverência sem submissão às diversas versões cinematográficas através de um belo conjunto de actrizes, liderado por uma luminosa Saoirse Ronan, em modo rápido e deslumbrante, servido por um guarda-roupa que rodopia, pela luz dourada ou sombria caindo sobre mansões, paisagens e ambientes, que sublinham mas protelam a época da Guerra da Secessão. A direcção da fotografia é de Yorick Le Saux.

Este é um filme divertido, terno e comovente, cruzado permanentemente pela alteração lógica dos tempos narrativos, embrulhado na música do hiperactivo Alexandre Desplat e por uma ostensiva vontade de mostrar como ainda é importante, hoje em dia, a luta pelo amor e o sentimento, pela independência profissional e afectiva da mulher, pela educação popular, pela igualdade racial.

Um excelente filme à antiga. Alegre, inteligente e empenhado. E sem uma gota de sangue ou demais humores!

jef, janeiro 2020

«Mulherzinhas» (Little Women) de Greta Gerwig. Com Saoirse Ronan, Emma Watson, Timothée Chalamet, Florence Pugh, Eliza Scanlen, Laura Dern, James Norton, Meryl Streep, Louis Garrel, Chris Cooper, Bob Odenkirk. Argumento: Greta Gerwig (a partir de um romance de Louisa May Alcott). Fotografia: Yorick Le Saux. Música: Alexandre Desplat. EUA, 2019, Cores, 134 min.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Sobre o disco «Lina_Raül Refree», Glitterbeat / Uguru, 2020

















A fadista Lina (o outro ego de Carolina, com disco de 2014 e participação em musicais de Filipe La Féria) encontra-se com Raül Refree, (músico e reconhecido produtor catalão ligado à música electrónica) e resolvem criar um disco de fado que poderia ser chamado "clássico" mas tem tudo para ser o oposto de “clássico”. O que o torna um caso curioso.

Por um lado, Lina não tenta “copiar” Amália em «Medo», «Gaivota» ou «Barco Negro». É ela própria que se atira ao «Fado Menor» com comoção e vibrato, talvez com a contida reverência, tímida fúria de quem se aproxima de «Foi Deus», juntando-lhes Améla Muge ou António Variações.

Por outro lado, a cantora não teme a construção ambiental electrónica, parecida com um certo trip-hop à Portishead / Beth Gibbons, com que Raül Refree vai destruindo cada canção anulando o (pre)conceito da limpidez da voz, adaptando-lhe ruídos, distorções, respirações, quase suspiros, tão ao modo das gravações que são apagadas nos estúdios por imperfeitas mas que guardam mais emotividade que as mais finalizadas mas cansadas versões. É como se Brian Eno entrasse numa antiga casa de fados, ainda sem turistas e, tomado pelo éter do vinho carrascão e pelo esconso obscuro das paredes, não conseguisse colocar no local certo os amplificadores, os microfones, os teclados, esquecendo-se até da guitarra portuguesa e da viola.

Raül Refree retira a alma de fadista de Lina e devolve-nos a sua voz.
Lina recobre uma certa loucura do fraseado ambiental, do mundo musical demente de Raül Refree, e entrega-nos o seu eco.

Um disco não para ouvir, mas para re-ouvir.

jef, fevereiro 2020

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Sobre o livro «Quando Servi Gil Vicente» de João Reis. Elsinore, 2019















João Reis tem algumas das características que sustentam os grandes escritores e que me fazem, em simultâneo, seguir-lhes os passos, livro a livro, página a página.

Primeiro – Ostenta devoção pela língua portuguesa. Melhor, tenta a sua rigorosa vocação para a língua portuguesa fazendo dela uma espécie de ofício duro, ardiloso, manufacturado, conquistando para ela, a cada obra, um inesperado ‘espaço / tempo’ de leitura. Como um ourives que também tenta a cada filigrana. Consta que Gil Vicente também tinha vocação para o ouro.

Segundo – Prova que, apesar do trabalho filigrânico, o escritor se diverte imenso, construindo a cada sintaxe, vocábulo, expressão ou cenário, um universo tão próximo quanto possível do quinhentismo do famoso dramaturgo. Corrijo, João Reis apercebesse que o melhor não será construir um romance histórico, já que as poucas informações existentes sobre o escritor o levariam a um pântano de mentiras e enganos. Mentiras e truques que logo seriam descobertas pelo leitor que, pronto, largaria o livro não chegando à metade.

Terceiro – Sendo assim, prefere buscar a escrita corrida, humorística, sem capítulos ou pausas, recuperando uma certa linguagem oral de romance de cordel ou auto real, para não falar das clássicas odisseias ou dos contos de encantar, onde as histórias se sucedem e os pormenores vão sendo repetidos, não vá aquele que as escuta esquecer um pormenor já falado. E vai intercalando, aos poucos, como tapeçaria, o início do próximo episódio no epílogo do anterior. Tudo feito, junto ao chão, junto ao degrau do patamar, onde aparece um medonho e inexplicado rolo de cabelos arrancados e crespos. Não estamos em Lisboa mas já em Rouen. As cidades movem-se como pequenas peças de um puzzle.

Quarto – O autor assume também que tem o legítimo direito de tratar Gil Vicente pela visão rasteira do seu servo, Anrique de Viena, tão de Viena como o macaco do turco decapitado. Pela visão terrena da velhice, da aldrabice, da pobreza, da fome e da solidão, em que vivia o Mestre nos anos derradeiros. João Reis brinca, mas brinca a uma brincadeira séria, muito séria, começando assim:

«Quem por usar nomes em vasto número se julgue acima de outrem dá mostras de soberbo, pois afinal o nome de uma pessoa, seja ele nome próprio dado ao baptizado por padrinhos ou sobrenome de alcunha ou lugar de família, ao nascer não se escolhe, tão aleatório quanto o nome de um alão ou sabujo. Não é por um alão se chamar Bravor ou um sabujo Duque que passam os ditos perros melhor.»
Tudo dito.

Quinto – O autor a cada romance ou novela, deseja ir mais além e explorar um pouco mais a técnica narrativa e descritiva da linguagem escrita. Ao chegar ao fim do livro, mais do que pelos escritos do grande dramaturgo, verifico que a minha atenção foi sendo deliciosamente arrebatada pelo microcosmos do caruncho que desfaz o tabuado do chão, ou da falta de sal que insonsa a pobre panela com meia dúzia de feijões a ferver, ou do banco macanjo que mal serve o barrigudo mensageiro da condessa de Gundesindes, ou do espelho milagroso do barbeiro, ou da solenidade guerreira do soberbo mas malogrado Vanberg. Os pêssegos e os arandos não se dão bem com a água. Ou das qualidades de curandeiro com salsa e hortelã frescas ou bengaladas dadas a preceito nas pernas do criado pelo dramaturgo.

O mestre fala:
«– A postura é também importante. Às vezes, é mais importante a postura do que o processo espiritual, diria eu. Não te basta reflectir, tens de parecer que reflectes para maior aproveitamento das potencialidades.»

Sexto – Resumo. Existe em João Reis e em «Quando Servi Gil Vicente»: (a) uma definitiva devoção pelo rigor nas palavras; (b) uma aturada alegria pela comunicação escrita; (c) uma hábil manufactura da linguagem tanto quanto à truncagem temporal dos episódios como à divertida descrição dos pormenores. Está nesta última um dos principais trunfos do livro; (d) uma despudorada apropriação de um dom que é só dele, da sua imagem de escrita, que é posteriormente transportada para os leitores, dando de Gil Vicente não a caricatura mas uma visão terna da sua decrépita finitude; (e) oferece aos leitores, a cada novo livro, razões de sobra para ficarem a aguardar, de boa ansiedade, o próximo tomo.

jef, fevereiro 2020

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Sobre o e-book «O Semáforo Amarelo» de André Ruivo, The Inspector Cheese Adventures / Printed Matter Inc, agosto 2019. 36 páginas





 


















Este é o primeiro e-book que tenho. E é muito bom. É do André Ruivo e está a meio caminho entre o livro e o filme de animação. Melhor, está próximo visualmente da memória que tenho do primeiro View Master em baquelite castanha que os nossos pais nos ofereceram, com vistas de Bruxelas, ou das primeiras sessões de slides vistas em família com o alto patrocínio da Kodachrome.

É um livro luminoso, espampanante, algo delirante ou alucinado pela própria luz. Livro para se ver em sala escura, como um filme, como um livro aberto, próximo do mais pequeno e anterior parente, «As Aventuras de Qualquer Coisa», Stolen Books 2018.

Aproximamo-nos da cidade, ou ela se vai chegando ao nosso olhar. Uma árvore, uma ondulação suave na paisagem ocre, um renque de árvores. Eis uma casa! Será um monte de paredes brancas e janela iluminada? Não. É mesmo a cidade que regressa. Um prédio, quatro andares, um candeeiro. Afinal, dois. Estamos perto. A urbe adensa-se geograficamente, geometricamente. Sugere domésticos paralelepípedos em modo nocturno e televisivo. Ora é noite, ora é dia. A luz não é igual mas as sombras permanecem. Aprofunda-se o mistério humanizado sem humanos à vista. Cidade fantasma mas com energia suficiente para se ouvir o estrondo dentro de uma das casas. As linhas rectas arredondam-se em curva, empurradas pelos trovões afunilados pelas ruas que se estreitam. As chaminés fumam, as janelas alumiam-se. A tempestade está a um passo, a inundação invade a claridade. Na página 33, o escarlate é berrante mas a cidade recompõe-se. De momento, os muros erguem-se na gravidade negativa, os tijolos e as luzes reflectem-se como repreendendo as guaritas de fronteira. Entre elas, dois homens. O transeunte, o traficante, o contrabandista, o resistente, o simples cidadão, é interpelado pela autoridade que não sabe bem se é mandante, algoz, esbirro ou chefe da banda!

É a história que eu lhe faço! Temos sempre o direito (talvez o dever) de as refazer. 
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jef, fevereiro 2020

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Sobre o filme «J'Accuse - O Oficial e o Espião» de Roman Polanski, 2019















Um dos filmes do ano.

Roman Polanski mostra como é mestre na narrativa de suspense e na encenação teatral num famoso caso de verdade-(in)justiça-mentira, um dos episódios mais perversos de anti-semitismo na Europa. L’Affaire Dreyfus. Um diligente oficial do exército francês é acusado injustamente de espionagem a favor da Alemanha por ser judeu, fazendo levantar ondas de ódio popular contra ele mas, por outro lado, arregimentar os intelectuais a favor da sua inocência. Tão famoso é o «Caso Dreyfus» como a carta aberta que Émile Zola escreve em sua defesa ao presidente da República Francesa, intitulada «J’Accuse» e publicada no jornal L’Aurore. Janeiro de 1898. Tiragem brutal de 300.000 exemplares… Um caso de mentira absoluta encenada pelos corredores dos serviços secretos militares contra um judeu tornando-se numa bomba noticiosa que divide a sociedade francesa. Se fosse hoje, alguém comentaria a «fake news» lançando-a para o esgoto das redes sociais e o ódio era incendiado… As coisas não mudaram muito.

O mais curioso neste empolgante filme de suspense e espionagem é o facto de ficarmos cativos logo no início pela cerimónia militar de humilhação pública de Alfred Dreyfus (um Louis Garrel transfigurado), num plano tenso e brutal, mas belíssimo, quase silencioso, em que a nossa atenção vira-se para o coronel George Picquart (Jean Dujardin) que assiste em formatura e que, a partir dali, investigará o caso suspeito pelos meandros dos serviços secretos.

George Picquart é um homem circunspecto, quase misantropo, quase altivo, pouco simpático, mas que tem a verdade por principio ético superior. De poucas falas mas militar de princípios e convicções, irá provocar um tremor de terra na estrutura hierárquica tanto política como militar de França.

A banda sonora de Alexandre Desplat é servida com parcimónia apenas na devida medida em que o silêncio é fundamental para a tensão criada no espectador, enquanto cenários, decores e guarda-roupa fazem-nos acreditar que estamos perante um drama romântico oitocentista, operático, que também é!

Os olhares, rigorosamente medidos, construindo as personagens em modo teatral, fazem parte integrante da aceleração da intriga. Temos de lhes estar atentos. Jean Dujardin dentro de Picquart, Louis Garrel dentro Dreyfus, Emmanuelle Seigner dentro Pauline Monnier, amante de Picquart, Grégory Gadebois dentro do nojento Henry, Mathieu Amalric dentro do grafologista expressionista,…

Sem dúvida um dos grandes filmes do ano e, tal como «Uma Vida Escondida» de Terrence Mallick (2019), nos impõe, cinematograficamente, a colossal dimensão que a consciência e a verdade possuem perante os mais terríveis paradoxos da humanidade: o anti-semitismo, a barbárie, a xenofobia.

jef, janeiro 2020

«J'Accuse - O Oficial e o Espião» (J'Accuse) de Roman Polanski. Com  Jean Dujardin, Louis Garrel, Emmanuelle Seigner, Grégory Gadebois, Mathieu Amalric, Melvil Poupaud, Eric Ruf, Didier Sandre, Hervé Pierre, Wladimir Yordanoff, Michel Vuillermoz. Argumento adaptado por Roman Polanski e Robert Harris a partir da novela «An Officer and a Spy» de Robert Harris. Música: Alexandre Desplat. Fotografia: Pawel Edelman. Itália / França, 2019, Cores, 132 min.