João Reis tem algumas das características que sustentam os grandes escritores e que me fazem, em simultâneo, seguir-lhes os passos, livro a livro, página a página.
Primeiro – Ostenta devoção pela língua portuguesa. Melhor, tenta
a sua rigorosa vocação para a língua portuguesa fazendo dela uma espécie de ofício
duro, ardiloso, manufacturado, conquistando para ela, a cada obra, um
inesperado ‘espaço / tempo’ de leitura. Como um ourives que também tenta a cada filigrana. Consta que Gil Vicente também tinha vocação para o ouro.
Segundo – Prova que, apesar do trabalho filigrânico, o
escritor se diverte imenso, construindo a cada sintaxe, vocábulo,
expressão ou cenário, um universo tão próximo quanto possível do quinhentismo
do famoso dramaturgo. Corrijo, João Reis apercebesse que o melhor não será construir um romance histórico, já que as poucas informações existentes sobre o
escritor o levariam a um pântano de mentiras e enganos. Mentiras e truques que
logo seriam descobertas pelo leitor que, pronto, largaria o livro não chegando à metade.
Terceiro – Sendo assim, prefere buscar a escrita corrida,
humorística, sem capítulos ou pausas, recuperando uma certa linguagem oral de
romance de cordel ou auto real, para não falar das clássicas odisseias ou dos
contos de encantar, onde as histórias se sucedem e os pormenores vão sendo repetidos,
não vá aquele que as escuta esquecer um pormenor já falado. E vai intercalando,
aos poucos, como tapeçaria, o início do próximo episódio no epílogo do
anterior. Tudo feito, junto ao chão, junto ao degrau do patamar, onde aparece um
medonho e inexplicado rolo de cabelos arrancados e crespos. Não estamos em Lisboa mas já em Rouen. As cidades movem-se como pequenas peças de um puzzle.
Quarto – O autor assume também que tem o legítimo direito de
tratar Gil Vicente pela visão rasteira do seu servo, Anrique de Viena, tão de
Viena como o macaco do turco decapitado. Pela visão terrena da velhice, da
aldrabice, da pobreza, da fome e da solidão, em que vivia o Mestre nos anos
derradeiros. João Reis brinca, mas brinca a uma brincadeira séria, muito séria,
começando assim:
«Quem por usar nomes em vasto número se julgue acima de outrem
dá mostras de soberbo, pois afinal o nome de uma pessoa, seja ele nome próprio
dado ao baptizado por padrinhos ou sobrenome de alcunha ou lugar de família, ao
nascer não se escolhe, tão aleatório quanto o nome de um alão ou sabujo. Não é
por um alão se chamar Bravor ou um sabujo Duque que passam os ditos perros
melhor.»
Tudo dito.
Quinto – O autor a cada romance ou novela, deseja ir mais
além e explorar um pouco mais a técnica narrativa e descritiva da linguagem escrita.
Ao chegar ao fim do livro, mais do que pelos escritos do grande dramaturgo, verifico
que a minha atenção foi sendo deliciosamente arrebatada pelo microcosmos do
caruncho que desfaz o tabuado do chão, ou da falta de sal que insonsa a pobre
panela com meia dúzia de feijões a ferver, ou do banco macanjo que mal serve o barrigudo
mensageiro da condessa de Gundesindes, ou do espelho milagroso do barbeiro, ou da
solenidade guerreira do soberbo mas malogrado Vanberg. Os pêssegos e os arandos
não se dão bem com a água. Ou das qualidades de curandeiro com salsa e hortelã frescas
ou bengaladas dadas a preceito nas pernas do criado pelo dramaturgo.
O mestre fala:
«– A postura é também importante. Às vezes, é mais importante
a postura do que o processo espiritual, diria eu. Não te basta reflectir, tens
de parecer que reflectes para maior aproveitamento das potencialidades.»
Sexto – Resumo. Existe em João Reis e em «Quando Servi Gil
Vicente»: (a) uma definitiva devoção pelo rigor nas palavras; (b) uma aturada alegria
pela comunicação escrita; (c) uma hábil manufactura da linguagem tanto quanto à
truncagem temporal dos episódios como à divertida descrição dos pormenores.
Está nesta última um dos principais trunfos do livro; (d) uma despudorada apropriação
de um dom que é só dele, da sua imagem de escrita, que é posteriormente transportada
para os leitores, dando de Gil Vicente não a caricatura mas uma visão terna da sua decrépita finitude; (e) oferece aos leitores, a cada novo livro, razões de
sobra para ficarem a aguardar, de boa ansiedade, o próximo tomo.
jef, fevereiro 2020
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