Um livro de entradas múltiplas e histórias cruzadas. Um livro
muito humano no que respeita a soluções adiantadas e dúvidas concluídas. Não as
apresenta. Cada um que interprete a solução, a dúvida, o desfecho para este mundo
com as armas e o grau de optimismo de que dispõe.
Uma ficção que se debruça sobre a realidade actual, aquela
que um dia se situará no centro científico dos historiadores. Uma ficção que
exibe o trunfo da fantasia como móbil para a salvaguarda do futuro. Uma
realidade feita, ela própria, de ficções, metáforas, interpretações, afectos e
julgamentos.
A história do armador Manuel Galeano e da sua família, iniciada
com a de Edmundo Galeano, o filho mais novo, a copiar, como treino da sua mão carente,
os versos da «Ode Marítima» de Álvaro de Campos, terminando com a cópia dos
primeiros versos da «Ilíada» de Homero. A primeira ode revela o desejo de
partir de casa, fugir do solo férreo, em busca desenfreada e louca do nada
marítimo, do nada futuro. A segunda ode é o inverso, é a defesa do solo e da
pátria à força da lâmina e do sangue, para conquistar a integridade do povo, da
família e do amor.
Faz todo o sentido.
Por todas as razões e ao longo do romance, a família Galeano
vai ficando reunida (ou aprisionada) no casarão vindo do bisavô, em Lisboa, no
Largo do Corpo Santo. À beira Tejo. A casa é um porto de abrigo, mas também navio
encalhado, até esquife.
Charlote aguarda, unida ao seu filho David, o termo do
Amor maior, mas interrompido, com Amadeu Lima. Sílvio busca o paradeiro do
“Imortal”. Alexandre lança ao rio, envergonhado, garrafas com desejos
espirituais. João Vasco procura refúgio para a família russa, por nascer. Mas
sobre todos, a figura tutelar, muda, quieta, mas de dedo em riste e brincos de
pérola, de Tatiana. A matriarca vive na suite
real envolta em livros e exibindo o poder agregador de clã.
E o mundo a colapsar, e a ria a transbordar de plástico, e o campo
de refugiados de Dadaab do ACNUR, entre o Quénia e a Somália, que continua a
insustentar vidas humanas… Um estuário delta e desértico que desagua sem água nem
mantimentos.
Edmundo escreverá o livro?
Charlote salvará a memória da sua história de Amor?
«Quem disse alguma vez que os limites da nossa linguagem são
os limites do nosso mundo, troçou da inteligência alheia. (…) Na verdade, os
limites do seu mundo não coincidiam com os limites impostos pela sua linguagem»
(pp. 165). Diz ela.
As linguagens podem andar desfocadas dos mundos. É a questão
pela qual a ficção literária luta eternamente, correndo à frente ou no encalço
da realidade e da consciência. Assim foi para Álvaro de Campos, assim foi para
Homero. Assim é para Lídia Jorge.
jef, dezembro 2018
Sem comentários:
Enviar um comentário