quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Sobre o livro «O Inverno do Nosso Descontentamento» de John Steinbeck, Livros do Brasil, 2014 (1961). Tradução de João Belchior Viegas.











Ethan Allen Hawley vive em New Baytown. É descendente de orgulhosos caçadores de baleias e piratas aristocráticos. Acompanhamo-lo da Páscoa até ao Dia da Independência. Possui na vitrine um talismã dado pela tia Deborah e ao lado, numa pata de elefante, a bengala feita de dente de narval vinda do avô marinheiro. Traz na memória o ancestral incêndio no navio Belle Adair e a perda pelo pai da propriedade da mercearia onde agora trabalha como empregado. Tem uma encantadora esposa, a amorosa e confiante Mary, e dois filhos tão comuns quanto adolescentes: Ellen e Allen.

E sobre o livro nada mais pode ser dito sem estragar a sua capacidade “cinematográfica” de manietar o leitor numa rede secreta (mas trágica) que nos faz acarinhar as doces personagens para, logo de seguida, lhes entregar a suspeita da vingança e da desiludida resignação.

Certamente New Baytown ainda hoje existe, mas sem poder ostentar essa falsa mas literária ingenuidade que agora é dissecada até ao osso pelas redes sociais. Certamente, também hoje, ainda permanecerá essa crença profunda numa “América pura” (e hipócrita) mesmo que a verdade sobre a sua “impureza” esteja exposta aos quatro ventos.

O poder dos diálogos em descrever e narrar o que não está dito (nem olhado), de acicatar o crescente estado de inquietude romântica provocado pela sua leitura, lançam-nos num suspense quase policial, intimista e psicótico, a lembrar a inquietação sarcástica de Hitchcock ou Highsmith.

Um romance que se lê com a mesma cativante premência que nos é imposta pela sorridente crueldade de «Alice no País das Maravilhas».


jef, dezembro 2020

 


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