sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Chungking Express» de Wong Kar Wai, 1994


 






























De certo modo, podia ser um «Blade Runner» (1982) pelo ritmo inóspito de sobrevivência, pela atmosfera oriental e saturada, pela desconfiança solitária no futuro. Mas em «Chungking Express» existe uma maravilhosa tendência non sense para o humor superlativo e para a ternura cerimoniosa que o coloca no lado oposto do distópico filme de Ridley Scott.

O polícia 223, He Zhiwu (Takeshi Kaneshiro) tem dificuldade em apanhar os malfeitores na noite densa de Hong Kong talvez porque a sua namorada May o deixara no final de Abril. Por mais que corra para que o corpo não possua água suficiente para as lágrimas, por mais que coma ananás de latas com prazo a terminar a 1 de Maio, o alimento referido de May, não consegue esquecer o abandono e vai até a um famoso bar na cidade afundar as mágoas em whisky. Aí encontra uma incógnita rapariga de gabardina, óculos escuros, cabeleira loura, fugida do drug dealer que acabara de lhe roubar o produto. No quarto de hotel, ela dorme, ele come batatas fritas. Mais tarde, no dia 1 de Maio, dia do seu aniversário, recebe uma mensagem de parabéns da incógnita loura.

No snack-bar onde telefona diariamente, o polícia 223 quase não repara na nova empregada Faye (Faye Wong). Porém, esta faz boa nota do polícia de giro 663 (Tony Chiu-Wai Leung) que está prestes a romper o namoro com uma comissária de bordo. Sabendo que ele ali vai todos os dias, quando esta última parte deixa-lhes as chaves num envelope nesse snack-bar. Secretamente, Faye pega nelas e começa a frequentar a casa do polícia nas suas horas de turno. Assim, principia um namoro platónico em qualquer dos sentidos.

Sobre estes dois contos cruzados, Wong Kar Wai verte doses colossais de movimentos de câmara, iluminação, sons, canções e música que até podia fazer-nos crer estarmos frente a um enorme video-clip, não fosse a parcimónia narrativa, ao mesmo tempo nostálgica e sorridente, com que preenche a alma e o olhar dos personagens. Esse modo devoto como Faye enche de carpas o aquário do polícia 663, ou o carinho com que o polícia 223 limpa com a gravata os sapatos da mulher adormecida.

Um filme sobre a generosa solidão. Um filme que fica nos ouvidos.


jef, dezembro 2020

«Chungking Express» de Wong Kar Wai. Com Tony Chiu-Wai Leung, Brigitte Lin, Faye Wong, Takeshi Kaneshiro, Valerie Chow, Jinquan Chen, Lee-Na Kwan, Zhiming Huang, Liang Zhen, Songshen Zuo. Argumento: Wong Kar Wai. Fotografia: Christopher Doyle, Andrew Lau Wai Keung. Música: Frankie Chan, Michael Galasso, Roel A. García. Canções: “California Dreamin” The Mamas & the Papas; “What a Diff'rence a Day Made” por Dinah Washington. Produção: Wong Kar Wai, Chan Ye Cheng, Jacky Pang Yee Wah, Jet Tone Productions Ltd. Hong Kong / China, 1994, Cores, 102 min.

Sem comentários:

Enviar um comentário