«A verdade dos factos, conceito que nem os juristas usam sem que um sorriso lhes traia o pensamento oculto, é a camada mais desinteressante da existência, a coutada vitalícia das pessoas sem imaginação.»
É uma espécie de aviso que o escritor coloca a meio da
primeira parte, na qual Bruno, o narrador, regressa a casa da mãe no Bairro
Amélia, Margem Sul, após o casamento falhado com Sara. Depois de ter reparado
nos versos de Pablo Neruda atirados para o contentor do lixo.
Aí, também sabemos da existência de dona Cremilde, muito
velha, enérgica, ágil, enxuta de carnes, especialista em féretros e desgraças,
acorrendo pela noite aos gritos de uma explosão funesta que, afinal, ó
desilusão!, se revela o simples enterro do entrudo promovido por alguns foliões
tardios.
Na segunda parte, alfabética, na entrada pela letra C,
sabemos que dona Cremilde chegou na ponte aérea vinda de Angola, tinha uma irmã
que morreu num desastre de avião, e mais duas irmãs: Lena com escassez de
dentes e Elvira que não confiava em elevadores. Cremilde teve uma grande
paixão.
Tudo se passa há 30 anos, ou talvez antes, ou talvez depois.
Toda a memória contida no percurso de uma bicicleta, ou de um autocarro, levada
pelas fotografias de um improvável e fantástico Virgílio. Este tem também
direito a uma entrada na letra V.
A segunda parte, de A a Z, inclui uma circunstancial descrição do
Bairro Amélia sob os auspícios da «Meteorologia», uma lista narrativa em
«Mortos», outra em «Nomes», um inventário por «Sons». Apenas «Paula (a maior
puta do Bairro Amélia) não tem direito a narrativa. Apenas uma nota breve: «As
putas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia.». Devo acrescentar que
esta nota é um das 95 que preenchem grande parte do rodapé das 300
páginas do livro, representando um novo e importante capítulo.
Porém, o mais inesperado é a agilidade da escrita, a
sua erudição sistematicamente justificada, essa espécie de resumo ou fusão,
talvez mesmo conclusão, da literatura portuguesa (que eu conheço), onde todas as histórias se encontram cruzadas e truncadas. Como acontece nas recordações e nos sonhos.
Um livro que é exactamente sobre a essência da memória que se vai apagando, num injusto tributo ao esquecimento do passado que devia ser perene. É uma
espécie de epitáfio vibrante mas melancólico perante a vida que os dias deixam para
trás. Contudo, e não menos vibrante, é um livro que nos faz recuperar as linhas
lidas em outros livros, as vidas vistas em outros dias.
Rejeita o “realismo”, por este não conter uma certa fantasia
mais real que um “facto”, como rejeita o “romantismo” por na comédia (e na
tragédia) enraizar o modo de subtrair e expor a deriva interior das mil
personagens e das suas histórias. Mais “naturalista” (mas também hesito) nesse
modo de tão bem sacar a célula distintiva de cada grupo, de cada cultura, de
cada expressão.
E se autores recordo, porque a memória dos livros é também
nossa memória real, são eles António Lobo Antunes de «Memória de Elefante» ou
José Saramago de «Todos os Nomes» (poderei colocá-los juntos aqui?), pelo olhar
filigrânico e contemplativo sobre os outros. O modo cronista de Trindade Coelho
(«In Illo Tempore»), de cronovelema de Mário de Carvalho, de justiça emocional
de Rui Cardoso Martins («Levante-se o Réu»), de Mário Zambujal («Crónica dos
Bons Malandros«), de Dinis Machado («O Que diz Molero»)… Esse lado de
compreender a dor, o abandono, a tristeza e a morte, inefáveis, de Maria Judite
de Carvalho («Tanta Gente Mariana»), Maria Ondina Braga («Estação Morta») ou
Lídia Jorge («O Vento Assobiando nas Gruas»). Enfim… essa forma tão característica
de expurgar a solidão inelutável de Bernardo Soares.
Um livro circular de contos para crianças insones e sem medo
da morte que nos faz voltar sempre à primeira página para reconhecer o lastro
furioso que deixam em nós «As Primeiras Coisas».
Com certos livros apetece-me mesmo parecer exagerado!
jef, março 2021
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