domingo, 28 de fevereiro de 2021

Sobre o filme «O Tempo do Lobo» de Michael Haneke, 2003

 











A cinematografia de Michael Haneke é, na sua maior parte, uma cinematografia de limites, de guerra, de situações onde as personagens (e os espectadores com elas) se encontram no centro de uma angústia sem tempo ou espaço. Melhor, onde cada um está à sua mercê, sem ajuda física e moral, sem justificação ou estratégia. Sem fim à vista. Mal o filme começou e já Anne (Isabelle Huppert) se vê despojada de quase tudo, guiando uma bicicleta pela estrada fora, acompanhada pelos seus dois filhos menores: Eva (Anaïs Demoustier) e Benny (Lucas Biscombe). O mundo sucumbiu a uma abstrata pandemia bélica, onde não há comida, medicamentos e combustível, os aquíferos estão contaminados, os animais ardem em piras no centro das aldeias. As portas fecham-se, os cães vagueiam e o único caminho possível é seguir a linha férrea até uma estação onde é escusado aguardar um comboio que não chegará. Mas a estação é um tecto. Um tecto onde uma humanidade sobrevivente se tenta proteger enquanto espera pelo mais que provável apocalipse. Mas um apocalipse que não contará com qualquer revelação.

Distante está a determinação política de «1984» de George Orwell ou «Fahrenheit 451» de Ray Bradbury. Neste mundo não há vigilância superior ou livros para serem queimados. Aqui olha-se de frente a angústia. Apenas a clausura num espaço sem casas, construído de sombras funestas, planos fechados e luminosidade quase renascentista, onde todos se organizam entre a anarquia, a doença e o desespero de uma fuga sem causa.

Em «O Tempo do Lobo» não se ouve uma audível nota musical. Apenas a pequena Eva pede a um outro jovem expatriado que lhe deixe ouvir a música que toca em surdina no seu leitor de cassetes. Ele sorri e pede-lhe que depois rebobine com a esferográfica para poupar as pilhas. Praticamente nada ouvimos mas é o Adagio molto espressivo da sonata nº 5 em Fá maior de Beethoven, op. 24, conhecida por «Primavera». Assim Eva é salva das trevas.

Nas imagens derradeiras, será ainda pelo recomeço dos campos primaveris, olhados pela janela de um comboio em trânsito, que o pequenino Benny também sobreviverá às chamas.

Um filme sobre a eterna errância da humanidade.

 

jef, fevereiro 2021

«O Tempo do Lobo» (Le Temps du Loup) de Michael Haneke. Com Isabelle Huppert, Béatrice Dalle, Patrice Chéreau, Rona Hartner, Lucas Biscombe, Anaïs Demoustier, Olivier Gourmet, Maurice Bénichou. Brigitte Roüan, Hakim Taleb, Anaïs Demoustier, Serge Riaboukine, Maryline Even, Costel Cascaval, Luminita Gheorghiu, Valérie Moreau. Argumento: Michael Haneke. Fotografia: Jürgen Jürges. França / Áustria, 2013, Cores, 114 min.

 

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