«Para
deixar um coração irremediavelmente destroçado, o destino não precisa nem de um
grande impulso nem de recorrer a uma força brutal e brusca; dir-se-ia que a sua
indomável vontade de moldar retira prazer, justamente, em aniquilar por um
motivo fútil. Na nossa obscura linguagem humana, chamamos a esse primeiro
contacto indefinido «causa fortuita», e comparamos com surpresa a sua dimensão
diminuta com as consequências muitas vezes poderosas que dele advêm; mas, do
mesmo modo que uma doença não começa com o diagnóstico que dela se faz, também
o destino de uma pessoa não começa só quando se torna visível e se concretiza.
Muito antes de atingir a alma a partir de fora, o destino manobra por dentro,
no espírito e no sangue. Conhecer-se é já defender-se – e quase sempre em vão.»
Este
é o introito com que se inicia, precisamente, o conto «Coração Destroçado». A
história de um velho e respeitado funcionário, árduo trabalhador em prol da
família, que resolve ir passar umas férias com a esposa e a filha às
meridionais temperaturas, deixando para trás as termas germânicas onde costuma
tratar-se dos habituais cálculos biliares. Numa noite de insónia, um movimento
no corredor e uma suspeita diabólica cola-se-lhe ao destino. Será uma das
melhores definições para a escrita de Stefan Zweig. Uma escrita tão
desvalorizada como amada pelos leitores mundiais que, em Portugal, fez encher
as estantes de muitos lares com as consecutivas edições das Livraria
Civilização, nos passados anos 1940-50. Tão psicologicamente existencialista
(ou romanticamente realista) como Dostoiévski, Pirandello, Kafka ou Flaubert, é
capaz de arrastar o leitor através dos minuciosos véus que, sucessivos,
escondem a personalidade das figuras pelas quais o autor visivelmente se
apaixona. E o que o une a todas aquelas vedetas literárias é esse sábio jeito
de mostrar as clivagens, medos e interstícios das personagens sem lhes colocar
sobre a cabeça qualquer espada moral. Ele tem sempre o cuidado de mostrar todas
as faces de que se compõem, logo todas as causas e cambiantes, levando o leitor
a, com ele, também por elas se enamorar. E fá-lo de um jeito muito sóbrio,
quase tímido, escondendo a mestria novelesca numa cultura universal, sem
fronteiras de língua ou outra, de que era absolutamente e apaixonado devedor.
Neste
volume não surgem o famosíssimo «Vinte e Quatro Horas da Vida duma Mulher»
(1935), o sintomático «O Alfarrabista Mendel» (1929) ou o derradeiro «Novela de
Xadrez» (1942). Porém, entre as oito ficções estão talvez duas das mais
complexas e carismáticas novelas do escritor: «O Medo» (1925) e «Confusão de
Sentimentos» (1927). É raríssimo ler-se assim a atroz ansiedade de uma mulher
presa na teia que o seu próprio tédio construiu, ou o angustiante sofrimento de
um amor calado e proibido entre o professor e o seu aluno.
Sem
dúvida, Stefan Zweig sabe dissecar sem alguma vez culpar a alma dos homens.
Em
1942, escreveu «O Mundo de Ontem» mas pode ser muito bem o símbolo futuro de
uma cultura livresca, nostálgica e humanista que tem urgentemente de voltar a
ser popular.
jef,
junho 2021
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