terça-feira, 15 de junho de 2021

Sobre o livro «Confusão de Sentimentos» de Stefan Zweig, Antígona, 2004. Tradução de Manuela Gomes.














«Para deixar um coração irremediavelmente destroçado, o destino não precisa nem de um grande impulso nem de recorrer a uma força brutal e brusca; dir-se-ia que a sua indomável vontade de moldar retira prazer, justamente, em aniquilar por um motivo fútil. Na nossa obscura linguagem humana, chamamos a esse primeiro contacto indefinido «causa fortuita», e comparamos com surpresa a sua dimensão diminuta com as consequências muitas vezes poderosas que dele advêm; mas, do mesmo modo que uma doença não começa com o diagnóstico que dela se faz, também o destino de uma pessoa não começa só quando se torna visível e se concretiza. Muito antes de atingir a alma a partir de fora, o destino manobra por dentro, no espírito e no sangue. Conhecer-se é já defender-se – e quase sempre em vão.»

Este é o introito com que se inicia, precisamente, o conto «Coração Destroçado». A história de um velho e respeitado funcionário, árduo trabalhador em prol da família, que resolve ir passar umas férias com a esposa e a filha às meridionais temperaturas, deixando para trás as termas germânicas onde costuma tratar-se dos habituais cálculos biliares. Numa noite de insónia, um movimento no corredor e uma suspeita diabólica cola-se-lhe ao destino. Será uma das melhores definições para a escrita de Stefan Zweig. Uma escrita tão desvalorizada como amada pelos leitores mundiais que, em Portugal, fez encher as estantes de muitos lares com as consecutivas edições das Livraria Civilização, nos passados anos 1940-50. Tão psicologicamente existencialista (ou romanticamente realista) como Dostoiévski, Pirandello, Kafka ou Flaubert, é capaz de arrastar o leitor através dos minuciosos véus que, sucessivos, escondem a personalidade das figuras pelas quais o autor visivelmente se apaixona. E o que o une a todas aquelas vedetas literárias é esse sábio jeito de mostrar as clivagens, medos e interstícios das personagens sem lhes colocar sobre a cabeça qualquer espada moral. Ele tem sempre o cuidado de mostrar todas as faces de que se compõem, logo todas as causas e cambiantes, levando o leitor a, com ele, também por elas se enamorar. E fá-lo de um jeito muito sóbrio, quase tímido, escondendo a mestria novelesca numa cultura universal, sem fronteiras de língua ou outra, de que era absolutamente e apaixonado devedor.

Neste volume não surgem o famosíssimo «Vinte e Quatro Horas da Vida duma Mulher» (1935), o sintomático «O Alfarrabista Mendel» (1929) ou o derradeiro «Novela de Xadrez» (1942). Porém, entre as oito ficções estão talvez duas das mais complexas e carismáticas novelas do escritor: «O Medo» (1925) e «Confusão de Sentimentos» (1927). É raríssimo ler-se assim a atroz ansiedade de uma mulher presa na teia que o seu próprio tédio construiu, ou o angustiante sofrimento de um amor calado e proibido entre o professor e o seu aluno.

Sem dúvida, Stefan Zweig sabe dissecar sem alguma vez culpar a alma dos homens.

Em 1942, escreveu «O Mundo de Ontem» mas pode ser muito bem o símbolo futuro de uma cultura livresca, nostálgica e humanista que tem urgentemente de voltar a ser popular.

 

jef, junho 2021

 

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