De modo interior, coisa profunda que a leitura provoca, relações,
coincidências, sinapses no interior da memória, ao terminar «O Quarto de Giovanni» recordei-me
da intranquilidade crescente que me provocou a leitura de «O Estrangeiro» de
Camus. Essa inquietação que as grandes obras escritas sobre o desespero da
solidão definitiva e a amargura do que fica calado provocam na alma do leitor
que se deixa aprisionar pelo talento narrativo do escritor filósofo.
Somente os grandes, como James Baldwin, conseguem cativar a
leitura começando a contar, assim, a história pelo fim. Desde logo, o jogo
é-nos desvendado. As peças e dados já estão lançados e consumada a tragédia
numa certa cidade de Paris que, ardentemente, deseja ver o Verão terminado e
com ele também a paixão condenada entre o jovem americano David e o jovem
italiano Giovanni. Ambos estrangeiros.
«Era uma questão de punição e
sofrimento. Não sei como soube isso, mas soube-o imediatamente. Talvez porque
no fundo eu queria viver. E olhei para o quarto com aquela extensão nervosa e
calculista da inteligência e de todas as nossas forças que sobrevém quando
avaliamos um perigo incontornável e mortal.»
Apenas a mestria consegue apresentar o facto, sem rodriguinhos
e autocomiseração, indo directa ao assunto com o rigor das descrições finas,
sucintas, ternamente circunstanciais, e os diálogos que nos deixam perante o
desconforto do que nunca será dito e a suja amargura dos ambientes que vão
toldando o ocaso do que já nos foi dado ouvir do início.
E esse facto é a tragédia da sua própria negação. A negação
que é o inexorável caminho para a evidência e a evidência é um lugar anunciado
e terrivelmente escuro.
Estranhas similitudes. Tal como no livro de Albert Camus, o
protagonista é confrontado com ausência de si próprio através do anúncio, longínquo
e frio, da morte de sua mãe num asilo, também neste livro, a falta de uma mãe
parece ser o ponto de partida para o caminho de David em direcção ao coração do
seu escondido e repudiado mal. Nos dois livros, a sociedade em volta, inquisitorial,
papel de embrulho revelador de uma angústia avolumada e de uma culpa sem
redenção, aponta o dedo e retira qualquer possibilidade de perdão. Faz largar a
energia cinética da lâmina sobre a recusa de um corpo. A lâmina corre na
aceleração da gravidade e da pena dessa negação.
É um romance soberbo, que se lê de um fôlego, publicado pela primeira vez em 1956
com a inclemente objectividade e a sinistra clarividência de que a homossexualidade
era uma circunstância punível nos Estados Unidos e de que a pena de morte só seria
interdita em França em 1981, pelo esforço de François Miterrand, entrando como emenda
na constituição francesa apenas em 2007.
jef, novembro 2020
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