segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Sobre o livro «O Quarto de Giovanni» de James Baldwin. Alfaguara, 2020 (1956). Tradução de Valério Romão.


 









De modo interior, coisa profunda que a leitura provoca, relações, coincidências, sinapses no interior da memória, ao terminar «O Quarto de Giovanni» recordei-me da intranquilidade crescente que me provocou a leitura de «O Estrangeiro» de Camus. Essa inquietação que as grandes obras escritas sobre o desespero da solidão definitiva e a amargura do que fica calado provocam na alma do leitor que se deixa aprisionar pelo talento narrativo do escritor filósofo.

Somente os grandes, como James Baldwin, conseguem cativar a leitura começando a contar, assim, a história pelo fim. Desde logo, o jogo é-nos desvendado. As peças e dados já estão lançados e consumada a tragédia numa certa cidade de Paris que, ardentemente, deseja ver o Verão terminado e com ele também a paixão condenada entre o jovem americano David e o jovem italiano Giovanni. Ambos estrangeiros.

«Era uma questão de punição e sofrimento. Não sei como soube isso, mas soube-o imediatamente. Talvez porque no fundo eu queria viver. E olhei para o quarto com aquela extensão nervosa e calculista da inteligência e de todas as nossas forças que sobrevém quando avaliamos um perigo incontornável e mortal.»

Apenas a mestria consegue apresentar o facto, sem rodriguinhos e autocomiseração, indo directa ao assunto com o rigor das descrições finas, sucintas, ternamente circunstanciais, e os diálogos que nos deixam perante o desconforto do que nunca será dito e a suja amargura dos ambientes que vão toldando o ocaso do que já nos foi dado ouvir do início.

E esse facto é a tragédia da sua própria negação. A negação que é o inexorável caminho para a evidência e a evidência é um lugar anunciado e terrivelmente escuro.

Estranhas similitudes. Tal como no livro de Albert Camus, o protagonista é confrontado com ausência de si próprio através do anúncio, longínquo e frio, da morte de sua mãe num asilo, também neste livro, a falta de uma mãe parece ser o ponto de partida para o caminho de David em direcção ao coração do seu escondido e repudiado mal. Nos dois livros, a sociedade em volta, inquisitorial, papel de embrulho revelador de uma angústia avolumada e de uma culpa sem redenção, aponta o dedo e retira qualquer possibilidade de perdão. Faz largar a energia cinética da lâmina sobre a recusa de um corpo. A lâmina corre na aceleração da gravidade e da pena dessa negação.

É um romance soberbo, que se lê de um fôlego, publicado pela primeira vez em 1956 com a inclemente objectividade e a sinistra clarividência de que a homossexualidade era uma circunstância punível nos Estados Unidos e de que a pena de morte só seria interdita em França em 1981, pelo esforço de François Miterrand, entrando como emenda na constituição francesa apenas em 2007.

 

jef, novembro 2020

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