segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Sobre o livro «A Luz da Guerra» de Michael Ondaatje. Relógio D’Água, 2018. Tradução de Margarida Periquito.

 

 

«A maior parte das grandes batalhas ocorre nos vincos dos mapas topográficos.»

Resumidamente, o comentário de Robert Bresson retirado de uma entrevista filmada e que serve de epígrafe a este livro inevitável, resume-o de modo paradigmático.

Na guerra, na grande História ou nas “pequenas histórias que guardamos precariamente mas que compõem as nossas vidas”, a maior parte das virtudes e tragédias ficam abandonadas pela leitura leviana ou nem são lidas por se esconderem nos locais mais inacessíveis da memória.

A Segunda Grande Guerra destruiu a Europa reedificando-a depois segundo um alfabeto de violência e esquecimento que perdurou até aos nossos dias e que foi mal negociado desde o armistício, em Maio de 1945. Este livro conta ainda a história pungente e secreta de Londres, sobrevivente às suas próprias custas, dessa lenta e longa agonia a que se chama o “sarar das feridas”.

Nada sobre o livro poderá ser dito sem destruir o seu extraordinário enigma literário (contado de forma única!) sobre tal dédalo de mentiras, segredos e enganos, resistência e organização subterrânea, sobrevivência, abandono, amor e luto. Sobretudo uma história de silêncios insuportavelmente ditos e insuportavelmente ouvidos.

Londres sai escalpelizada como a rã dissecada em vida que fica a pulsar entre alfinetes para que se lhe estudem, de modo radical, as veias e as artérias. Aqui ficam em vivissecção pela memória geográfica e juvenil de Nathaniel os vasos de uma cidade percorrida por afluentes, canais artificiais e eclusas de um Tamisa que sempre reconheceu as viagens clandestinas de meliantes, contrabandistas e resistentes.

Este livro, também ele construído psicanaliticamente por meandros e eclusas, tem o condão de mostrar sem piedade, mas com uma imensa ternura, a quantidade de falsos-verdadeiros órfãos deixados pela guerra atrás de uma muralha de solidão. A intimidade triste desses becos sem saída e enraizada na vitória dos aliados e no desentendimento e na ambição dos vencedores.

Acima de tudo, «A Luz da Guerra» descreve um povo combatente mas fleumático, humorístico e solidário, organizado, tradicionalista e intransigentemente jardineiro.

Um livro obrigatório.

 

jef, novembro 2020

 

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