«Travels With Charley: In
Search of America». Um
livro muito simples sobre uma América esquecida e reencontrada através da
viagem por uma grande parte dos 50 estados, ao volante do Rocinante, a caravana
especialmente equipada para o efeito. Sentado a seu lado vai Charley, um velho
cão d’água que sofre de alguns problemas de saúde mas também sofre de grandes
inteligência e intuição perceptiva. Sem ele, a voz de Steinbeck perder-se-ia
por não encontrar eco reflexivo. Lá atrás, o balde com água, roupa suja e detergente
chocalha, em moderno artefacto de "higienização".
Em 1960, o escritor tinha 58 anos e a percepção de que
não viveria muito mais tempo. O livro é publicado em 1962, ano em que receberá
o prémio Nobel e, 58 anos depois, é indicado em Portugal como leitura
recomendada no plano lectivo dos liceus. E compreende-se que assim seja, até se
aplaude, pois, repito, é um livro simples sobre a vocação ecuménica da alma
humana, que entusiasma, entretém, ensina e comove como raros livros de viagem
farão.
Não interessa se a viagem ocorreu assim, daquele modo, ou
se parte é essência da viagem ficcional da narrativa. John Steinbeck é mestre
nesse estilo de “argumento” e deixa-nos na mão, para que nós a tomemos, essa
lógica “cinematográfica” que mistura uma certa melancolia de um bom livro, de
uma óptima viagem, que sabemos irá chegar ao fim e a aceitação nostálgica de
uma paisagem natural, urbana, humanizada que actualmente parece irreconhecível mas
que permanecerá sempre como sua.
A América é um lugar de cidades, estradas, florestas, desertos,
diners, estações de serviço, gentes que se encontram ou se isolam sob a
complacente observação do escritor, sobre o seu silêncio incisivo e
determinado. Ali está para nós uma realidade que será sempre “ficcionada” por
cada nova leitura, pela percepção de cada um, a começar pelas do autor. Desde
que ele parte de Sag Harbor, Long Island, atrasando os seus planos por ter de
salvar o seu veleiro da tempestade Donna, até aí voltar, meses depois, extenuado
de guiar, perdido nas vias rápidas de Nova Jersey, mas certo que encontrará um bom
chui que lhe dirá: «Não pense nisso, amigo, ainda ontem me perdi em Brooklyn.»
Metáfora ou não, também Ulisses se quis perder até chegar a Ítaca
ou Marco Polo se deslumbrou com as sedas sem desejar regressar a Veneza. John
Steinbeck fala de uma América perdida e reencontrada com uma audácia apaixonada
de cowboy ou a firmeza introspectiva de monge: a América ali está perdida
nas suas vicissitudes e eternamente reedificada a partir dos seus escombros.
Assim também nós desejamos ver os Estados Undos da América em
construção, após as eleições da próxima semana. Trump não merece ser
conterrâneo de Steinbeck!
jef, outubro 2020
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