Retirando
do alinhamento o óbvio e dispensável bonus
track «Little Something» (embora comercialmente imprescindível com as
pandemias que correm) cantado em dueto com Sting, «Sunset in the Blue» vem
confirmar a minha ideia de que a bossa-nova é um caso sério inventado para cantores
raros, de vozes frágeis mas possuidores de convicções fortes, eficientes em
melodias de alma silenciosa propícias para a melancolia do esquecimento e para
textos que, julgados à pressa, sugerem pouco dizer.
A
bossa-nova parece sempre delicodoce mas pertence ao mundo profundo de um jazz estranho,
mundo que é revelado apenas ao talento de músicos que compõem em modo invisível
e arranjos transparentes, milimetricamente inseguros e harmoniosos, dados ao
improviso. Talvez mesmo só para “desafinados”. Amália Rodrigues e Stan Getz
conheciam-lhe o mistério. Melody Gardot aproxima-se-lhes em sub-reptícia e
perspicácia musicais. Na melancolia também.
Aliás,
esclareçamos que a cantora e compositora construiu um catálogo harmónico que só
podia vir aqui desembocar. Ou seja, adaptou a bossa-nova ao seu jazz aquático e
serenamente nostálgico. A produção permanece nas mãos de Larry Klein e os
arranjos orquestrais nas de Vince Mendonza. As orquestras são a Royal
Philharmonic Orchestra e a Global Digital Orchestra. Esta última, em «From
Paris with Love», convocada à distância “via electrão”, à conta do Covid, sendo
os músicos remunerados integramente. O jazz deslumbra-se na guitarra de Anthony
Wilson, no saxofone de Donny McCaslin, no piano de Philippe Baden Powell na
melhor faixa do álbum, «You Won’t Forget Me».
Claro
que Melody Gardot inclui «Moon River». E coloca a voz de António Zambujo num
registo mais grave do que o costume em «C’Est Magnifique». E compõe e canta em inglês,
francês e português. «Um Beijo» ou «Ninguém, Ninguém», suavemente, quase como desculpa,
numa tonalidade harmoniosa que muito deve a Pierre Aderne, esse
luso-franco-brasileiro que tem um cosmos musical secreto e mágico em Lisboa, perdido
lá para a Rua das Pretas.
Melody
Gardot sempre tem a suave e contida particularidade de quase não fazer notar a propensão
para a terna melancolia e, em «Sunset in the Blue», encontra-lhe um porto
seguro na sua muito íntima e “desafinada” bossa-nova.
jef,
novembro 2020
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