quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Sobre o disco «Sunset in the Blue» de Melody Gardot, Decca / Universal 2020

















Retirando do alinhamento o óbvio e dispensável bonus track «Little Something» (embora comercialmente imprescindível com as pandemias que correm) cantado em dueto com Sting, «Sunset in the Blue» vem confirmar a minha ideia de que a bossa-nova é um caso sério inventado para cantores raros, de vozes frágeis mas possuidores de convicções fortes, eficientes em melodias de alma silenciosa propícias para a melancolia do esquecimento e para textos que, julgados à pressa, sugerem pouco dizer.

A bossa-nova parece sempre delicodoce mas pertence ao mundo profundo de um jazz estranho, mundo que é revelado apenas ao talento de músicos que compõem em modo invisível e arranjos transparentes, milimetricamente inseguros e harmoniosos, dados ao improviso. Talvez mesmo só para “desafinados”. Amália Rodrigues e Stan Getz conheciam-lhe o mistério. Melody Gardot aproxima-se-lhes em sub-reptícia e perspicácia musicais. Na melancolia também.

Aliás, esclareçamos que a cantora e compositora construiu um catálogo harmónico que só podia vir aqui desembocar. Ou seja, adaptou a bossa-nova ao seu jazz aquático e serenamente nostálgico. A produção permanece nas mãos de Larry Klein e os arranjos orquestrais nas de Vince Mendonza. As orquestras são a Royal Philharmonic Orchestra e a Global Digital Orchestra. Esta última, em «From Paris with Love», convocada à distância “via electrão”, à conta do Covid, sendo os músicos remunerados integramente. O jazz deslumbra-se na guitarra de Anthony Wilson, no saxofone de Donny McCaslin, no piano de Philippe Baden Powell na melhor faixa do álbum, «You Won’t Forget Me».

Claro que Melody Gardot inclui «Moon River». E coloca a voz de António Zambujo num registo mais grave do que o costume em «C’Est Magnifique». E compõe e canta em inglês, francês e português. «Um Beijo» ou «Ninguém, Ninguém», suavemente, quase como desculpa, numa tonalidade harmoniosa que muito deve a Pierre Aderne, esse luso-franco-brasileiro que tem um cosmos musical secreto e mágico em Lisboa, perdido lá para a Rua das Pretas.

Melody Gardot sempre tem a suave e contida particularidade de quase não fazer notar a propensão para a terna melancolia e, em «Sunset in the Blue», encontra-lhe um porto seguro na sua muito íntima e “desafinada” bossa-nova.

 

jef, novembro 2020

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