O livro parece conter tudo. Especialmente esses fenómenos que permanentemente nos
acontecem (e nos formam) e também o caminho estranho que eles levam até chegarem
a nós e depois à sua interpretação, bem à nossa maneira.
Ao
longo das primeiras páginas a imagem de uma senhora vai-se desvanecendo e
outra, a de uma jovem, não chega a confirmar-se. Posso entender que é Virgínia,
viúva sem o ser, matematicamente austera, expulsando os afectos (pois nunca
trazem qualquer vantagem), dona de uma casa sem recheio, autarca, amante e mãe
de uma Eugénia que não chega a ter tempo de crescer (pois deve fugir da mãe
que lhe recusa a filosófica poesia que ela toma como principal fenómeno, embora escondido).
Uma
das grandes vantagens da leitura lúdica é de coleccionarmos imagens e sentidos
literários que vão fazendo parte de nós (e nos suscitam a análise dos ditos fenómenos). Ou talvez seja mais simples. Por empirismo, silogismo, mnemónica,
ou simples prazer de relacionar livros que nos são importantes, vamos criando
um mundo imaginário. Forte e Verdadeiro.
Valério Romão lança-nos nesse mundo real mas onde as imagens e
sentidos fragmentados no espaço surgem de uma linha temporal sistematicamente
truncada. Confundem-se inicialmente as gerações, os temores, os rancores, as
abstracções que a doença neurológica e a insuficiência social e afectiva lançam
sobre a interpretação dos fenómenos. Interpretação que, ela própria, é um
objecto. Lembro-me de «Tanta Gente, Mariana» de Maria Judite de Carvalho e de
Milene em «O Vento Assobiando nas Gruas» Lídia Jorge. Lembro-me ainda de
personagens feéricas mas amordaçadas de Branquinho da Fonseca, da narrativa
contínua, sem arestas onde as personagens possam descansar, de William Faulkner
a António Lobo Antunes; e os diálogos em discurso indirecto-directo por entre
as finas estrias de uma realidade indomada e adversa. Esses diálogos leves e
duros que buscamos em Saramago. (Consegui juntar aqui os dois autores!)
«e
só não compreendo a razão pela qual a lembrança chega sempre a destempo, sempre
em atraso, como se conversa e recordação estivessem de mal e não se pudessem
encontrar ao mesmo tempo no mesmo local, e ainda bem que ela já está a fazer
outra coisa, a cozinhar, a passar a ferro, a mudar a areia da gata, porque
assim não me vê sofrer este sentimento dos pobres, esta agonia de ainda ter
tudo cá dentro menos a forma adequada de lhe aceder.»
O
que verdadeiramente é apenas de Valério Romão é esse azimute emocional (e
literário) que faz aprisionar o leitor dentro da história de uma família sem
bainhas paliativas ou âncoras antissísmicas mas que, mesmo assim, vai deixando
sobre o texto a poeira do princípio maior da benevolência e da resistência projectadas
num futuro em que se poderá (ainda, talvez) confiar. Esse princípio devolve ao
livro «Cair Para Dentro» uma raiz profundamente política.
jef,
outubro 2021
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