terça-feira, 26 de outubro de 2021

Sobre o filme "A Metamorfose dos Pássaros" de Catarina Vasconcelos, 2020






















Este filme é um estranho objecto familiar.

O seu maior encanto vem do secreto escutar da palavra que narra a história sem que o discurso directo ou indirecto a interrompam ou destruam a suavidade poética com que ela evoca os vocábulos «mãe», «morte» e «mar». Toda a intimidade da família está aqui romanceada e fixada sem que seja maculada com mórbido voyeurismo. Coisa difícil que só a natureza-morta permite concretizar. Lembra um certo estado muito próximo do nocturno escutar infantil das histórias para adormecer, puxando os sonhos (e também os pesadelos). É o poder máximo da oralidade da literatura. Lembrei-me da paisagem nostalgicamente final de Daniel Blaufuks, de «Mãe e Filho» de Alexander Sokurov (2006), de «O Sacrifício» de Andrei Tarkovsky (1986), de «Fanny e Alexandre» de Ingmar Bergman (1982), de «As Praias de Agnès Varda» (2009). Por fim lembrei-me desse filme extraordinário que é «Shirin» de Abbas Kiarostami (2008).

Existe aqui uma técnica única onde as histórias se interceptam, cruzando as mães e as filhas, os pais e os filhos, formando um laço teórico e belo entre gerações que se trocam, unindo a família na brincadeira da memória e na tristeza do futuro. Tudo vem sublinhar (e sublimar) a morte, como é referido, que surge em crescendo para assentar cada vez mais a praça em general e suspender o voo do desejo e da esperança juvenis. Também o percurso contemporâneo e familiar da História de Portugal passa todo por ali. A beleza das imagens é surpreendente. Contudo, por vezes, tal composição pictórica torna-se demasiado figurativa, demasiado vinculada à linha narrativa.

Porém, a beleza maior e final do filme fica absolutamente cristalizada na comovente referência fonográfica que a mãe tenta gravar com as crianças para enviar ao pai, longínquo marítimo, um perdido e encontrado Ulisses. Um toque de mestre!


jef, outubro 2020

«A Metamorfose dos Pássaros» de Catarina Vasconcelos. Com Manuel RosaJoão Móra, Ana Vasconcelos, Henrique Vasconcelos, Inês Campos Catarina Vasconcelos, José Manuel Mendes, João Pedro Mamede, Cláudia Varejão, Luísa Ministro, José Maria Rosa, Ana Margarida Vasconcelos. Argumento: Catarina Vasconcelos. Fotografia: Paulo Menezes. Música: Madalena Palmeirim. Produção: Pedro Fernandes Duarte, Joana Gusmão, Catarina Vasconcelos. Portugal, 2020, Cores, 101 min.

 

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