domingo, 17 de outubro de 2021

Sobre o livro «Segredo Ardente» de Stefan Sweig (1911). Relógio D’Água, 2014. Tradução de Gilda Lopes Encarnação.


 









Stefan Zweig é um autor anacrónico. Escreve como se ainda o fizesse no tempo em que Balzac, Flaubert, Dostoiévksi, Victor Hugo, Charles Dickens se viam a braços com a polícia dos costumes, a liberdade da arte, a instabilidade social, a liberdade de publicar e revoltar, a política nos jornais e nos bairros. No entanto, vive já no tempo de Sigmund Freud e da alma no escalpelo, dos sonhos martirizados com o bisturi, da alma da Europa em vias de assassinato pelo nazismo. Os seus livros populares foram banidos e queimados. Suicidou-se por descrença na ressurreição do mundo. E tornou-se um dos seus símbolos, fazendo tocar o romantismo ou o realismo literários pelo lado mais perturbado, dissecado, talvez psicanalisado, da arte. Os títulos das suas novelas sublinham esse maravilhoso anacronismo.

«Segredo Ardente» é exemplo cabal da minúcia de bem contar uma história simples através do seu lado mais complexo e sintomático.

«O poder do amor nunca poderá ser convenientemente avaliado se for apenas medido pelos motivos que o originaram e não pela tensão expectante que o precede, esse espaço oco e escuro de solidão e desesperança que se abre ante todos os grandes acontecimentos do coração.»

Contudo, apesar de apaixonado, esta não é a história de um amor romântico mas a da iniciação de Edgar, um rapaz de doze anos, no mundo adulto dos afectos, ou antes, no mundo dos afectos adultos. Sentirá paixão e abandono, conhecerá a traição, raiva e o ciúme, dará crédito à desculpa como testemunho de sobrevivência.

Ternamente amarga, é uma novela de leitura compulsiva, cinematográfica, onde os pormenores descritivos relatam tanto quanto a acção narrativa. É um texto que regressa de um tempo onde a aristocracia pan-europeia sonhava viver numa eterna redoma intocável para lhe propor a naturalidade do risco, a instabilidade do sossego, o acidentado percurso do coração e da sociedade.

Sim, uma novela anacrónica mas indispensável.


jef, outubro 2021

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