Rita Azevedo Gomes
apresenta-nos a mais serena, profunda e perfeita reflexão sobre a imperfeição
dos dias, sobre a terna imperfeição do amor comum. Uma visão carinhosa e
complacente dos males que nos ocorrem, que nos podem acorrer.
E o mais estranho é que o
filme não tem qualquer truque, apenas o desejo de filmar em conjunto numa
altura em que a máscara era exigível e o confinamento nos tirava a alegria de ir
ao cinema e sugeria (em sonhos) à realizadora que não mais iria poder filmar.
O realizador Jorge (o
próprio realizador espanhol Ado Arrieta), alegremente, quase em jeito pueril,
passa o tempo a dizer que têm de refazer as cenas, de voltar a filmar e, no
fim, diz mesmo entre sorrisos que todos devem regressar ao princípio. Adélia
(Rita Durão) representa ou faz dela própria em momentos alternados onde o seu
francês é emendado em cena pelo actor-não-actor Pierre Léon (Paul). Há muito
que Adélia e Paul se divorciaram mas ela visita-o regularmente e conta-lhe
longamente os seus encontros e desencontros amorosos. Ele escuta-a com
benevolência, também inveja, e recorda-lhe que, de momento, se encontra sozinho. Sem dúvida parece entenderem-se numa parcela ínfima (mas de crucial
importância para a humanidade) que é a comunhão no seio de uma partitura
musical, um trecho musical que possui o imponderável poder de elevar o ser humano ao mais alto
estrato do firmamento emocional…
É evidente que Mozart (e a
sua inestimável arte de sacar tardiamente a mais maravilhosa veia nostálgica do
clarinete: o concerto KV 622, os quintetos KV 581 ou o KV 452) é cúmplice
principal. Aqui, o Trio para piano, clarinete e viola “Kegelstatt” KV498!
Também a casa vazia, as
janelas, as portas, os muros, as esquinas e o jardim da casa de Moledo
arquitectada por Siza Vieira são igualmente personagens principais.
E essa visão tão
modernamente romântica, tão dramaticamente directa que Eric Rohmer tem de
conversar sobre tudo e sobre nada em longas homilias pagãs, amorosas, litúrgicas e
letárgicas numa época em que ainda não havia telemóveis mas que também ninguém
sonhava com a chegada de uma pandemia que viraria o mundo do avesso.
Acima de tudo, essa
maravilhosa timidez cinematográfica de Rita Azevedo Gomes que subtrai tudo que
que não é essencial para nos colocar à frente da estrutura mais singela do
desejo amoroso, da mais íntima volição musical.
Um filme difícil de
esquecer!
jef, junho 2022
«O Trio em Mi Bemol» de
Rita Azevedo Gomes. Com Rita Durão, Pierre Léon, Ado Arrieta, Olivia Cábez,
Mauro Soares, Mário Veloso. Argumento: Rita Azevedo Gomes e Renaud Legrand, a partir
da peça de teatro de Éric Rohmer. Produção: Rita Azevedo Gomes e
Gonzalo García-Pelayo. Fotografia: Jorge Quintela. Som: Olivier Blanc, António
Porém Pires, Tiago Matos. Portugal/ Espanha, 2022, Cores, 127 min.
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