domingo, 4 de dezembro de 2022

Sobre o filme «O Trio em Mi Bemol» de Rita Azevedo Gomes, 2022




















Rita Azevedo Gomes apresenta-nos a mais serena, profunda e perfeita reflexão sobre a imperfeição dos dias, sobre a terna imperfeição do amor comum. Uma visão carinhosa e complacente dos males que nos ocorrem, que nos podem acorrer.

E o mais estranho é que o filme não tem qualquer truque, apenas o desejo de filmar em conjunto numa altura em que a máscara era exigível e o confinamento nos tirava a alegria de ir ao cinema e sugeria (em sonhos) à realizadora que não mais iria poder filmar.

O realizador Jorge (o próprio realizador espanhol Ado Arrieta), alegremente, quase em jeito pueril, passa o tempo a dizer que têm de refazer as cenas, de voltar a filmar e, no fim, diz mesmo entre sorrisos que todos devem regressar ao princípio. Adélia (Rita Durão) representa ou faz dela própria em momentos alternados onde o seu francês é emendado em cena pelo actor-não-actor Pierre Léon (Paul). Há muito que Adélia e Paul se divorciaram mas ela visita-o regularmente e conta-lhe longamente os seus encontros e desencontros amorosos. Ele escuta-a com benevolência, também inveja, e recorda-lhe que, de momento, se encontra sozinho. Sem dúvida parece entenderem-se numa parcela ínfima (mas de crucial importância para a humanidade) que é a comunhão no seio de uma partitura musical, um trecho musical que possui o imponderável poder de elevar o ser humano ao mais alto estrato do firmamento emocional…

É evidente que Mozart (e a sua inestimável arte de sacar tardiamente a mais maravilhosa veia nostálgica do clarinete: o concerto KV 622, os quintetos KV 581 ou o KV 452) é cúmplice principal. Aqui, o Trio para piano, clarinete e viola “Kegelstatt” KV498!

Também a casa vazia, as janelas, as portas, os muros, as esquinas e o jardim da casa de Moledo arquitectada por Siza Vieira são igualmente personagens principais.

E essa visão tão modernamente romântica, tão dramaticamente directa que Eric Rohmer tem de conversar sobre tudo e sobre nada em longas homilias pagãs, amorosas, litúrgicas e letárgicas numa época em que ainda não havia telemóveis mas que também ninguém sonhava com a chegada de uma pandemia que viraria o mundo do avesso.

Acima de tudo, essa maravilhosa timidez cinematográfica de Rita Azevedo Gomes que subtrai tudo que que não é essencial para nos colocar à frente da estrutura mais singela do desejo amoroso, da mais íntima volição musical.

Um filme difícil de esquecer!


jef, junho 2022

«O Trio em Mi Bemol» de Rita Azevedo Gomes. Com Rita Durão, Pierre Léon, Ado Arrieta, Olivia Cábez, Mauro Soares, Mário Veloso. Argumento: Rita Azevedo Gomes e Renaud Legrand, a partir da peça de teatro de Éric Rohmer. Produção: Rita Azevedo Gomes e Gonzalo García-Pelayo. Fotografia: Jorge Quintela. Som: Olivier Blanc, António Porém Pires, Tiago Matos. Portugal/ Espanha, 2022, Cores, 127 min.

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