quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Sobre o filme «Lobo e Cão» de Cláudia Varejão, 2022








































Não sei porquê saí do cinema a lembrar o «Sonho Azul» da grande Né Ladeiras (1982). Talvez por ser essa cor aquela que enquadra todas as outras, todas as figuras, todas as personagens, todas as expressões fotografadas por Rui Xavier. Talvez à conta da terna sensação de tranquilidade que a actriz Ana Cabral dirige até ao espectador, enchendo o espectro luminoso do ecrã. (Uma soberba actriz surgiu em São Miguel!)

Contudo, não se espere assistir a longas tiradas paisagísticas dignas do arquipélago atlântico. Não, os grandes planos paradisíacos não fazem parte deste filme. São preferidos os planos que assistem ao pormenor das rugas, dos sorrisos, dos trabalhos, dos murmúrios das gentes micaelenses regressados de um dia-a-dia que será menos confinado e insular do que se pensa. Um mundo aberto ao mundo e ao desejo que é despertado num corpo jovem, mesmo que não seja aquele estatisticamente comum. Um mundo novo e adolescente ainda assim enraizado em tradições, em rezas, na religião. Um universo que poderia, hipoteticamente, ser tratado por documentário, reportagem, auto-ficção. Lembrei-me por isso também de «Meu Querido Mês de Agosto» (Miguel Gomes, 2008) ou «A Metamorfose dos Pássaros» (Catarina Vasconcelos, 2020).

Uma vocação estética abstracta que faz truncar o quotidiano ilhéu com o de uma de comunidade politeísta discretamente exuberante e colorida, hipster, queer, e que se apresenta, no final, numa espécie cerimónia burlesca de despedida ao som da «Cold Song» de Henry Purcell.

Todos podem encontrar defeitos neste estranho filme mas quem não ficará tocado pela amabilidade das suas criaturas? Quem não recordará a suave fotogenia de Ana Cabral?


jef, dezembro 2022

«Lobo e Cão» de Cláudia Varejão. Com Ana Cabral, Ruben Pimenta, Cristiana Branquinho, Marlene Cordeiro, João Tavares, Nuno Ferreira, Mário Jorge Oliveira, Luísa Alves, Maria Furtado, Mia Amaral, Nuno Branco, Leandro Cosme, Valdemar Creador, Tomás Furtado de Melo, Emanuel Macedo. Argumento: Cláudia Varejão e Leda Cartum. Produção: João Matos e Jérôme Blesson. Fotografia: Rui Xavier. Música: Xinobi, Henry Purcell et al.. Guarda-roupa: Nádia Santos Henriques. Portugal, França, 2022, Cores, 111 min.

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