D. Cláudia observa, superior, as caras
dos convivas fúnebres transfiguradas pelas chamas da lareira.
“No entanto, pensando melhor, tais
juízos partiam de argumentos alicerçados no real: manias, doenças, tiques
psicológicos e morais, etc. Não eram construções à toa. De maneira nenhuma.
Podiam bem deduzir o seguinte sem se atraiçoar: vê-los desfigurados é vê-los
verdadeiros; todos eles fabricam fel; abelhas cegas, obcecadas.”
D. Cláudia, a de alma transparente, faz de compère ou de coro
grego ou de alter-ego do escritor que, resumindo, dá por finda a ronda por estes
seres falhados, ressabiados, rancorosos, empanturrados de inveja e remorsos,
com um longo passado cinzento mas sem qualquer futuro.
Álvaro Silvestre vive afundado em brandy e na tentativa de
redimir os pecados constantes, de se denunciar, de fugir da mulher, D.Maria dos
Prazeres, da sua instigação. Tenta entrar no quarto mas a porta encontra-se fechada à
chave.
De Montouro a Corgos chove continuamente e a tempestade não
dá tréguas sobre o mar longínquo como um túmulo nem sobre a oficina de olaria do mestre
António.
“O desespero sem remédio que
espreitava dentro dele irrompeu de novo. Pela madrugada irreal. Compreendeu que
nada podia sufocá-lo. Duma maneira ou doutra, na indiferença da mulher ou na
conversa do palheiro, fosse no que fosse, ouvi-lo-ia sempre. Agora mesmo uma
voz errando no silêncio lhe insinuava: as aves largam para o espaço mas serão
destruídas; há laranjas sãs pelas ramagens mas hão-de apodrecer; as
vindimadeiras cantam, o gado pasta, os homens cavam, mas tudo, tudo é estrume
da terra. No silêncio deserto a voz obsidiante persistia: quando quiseres matar
a sede, lavar o sarro desta noite, das conversas tidas, das conversas ouvidas,
a água secará de vez.”
Na minha leitura baralhada, caótica, feita de vagar e de comparações torpes, surge-me este livro escrito em XXXV estâncias (que devem ser lidas entre pausas como nos livros de poemas). Asseguro-me que bem compreendo como as personagens nos aparecem nítidas e interiores, ora penumbrosas ora diáfanas, como as de José Cardoso Pires, e as descrições narrativas tão feéricas e incontornáveis como as de Eça de Queirós.
jef, novembro 2022
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