Um filme clássico. Tem mais de tragédia grega do que aparenta. Fala de um homem sem qualidades que leva o tormento até ao fim, até aguentar, até se matar com dezenas de copos de aguardente. Um filme onde ninguém aparenta estar e ser feliz mas que envolvem o personagem como um coro que vai, figura a figura, de silêncio em silêncio, de flashback em flashback, definindo as razões por que retiraram as qualidades a Hans, o tal homenzinho. Sem redenção. Sem deus ex-machina. Um melodrama perfeito.
Hans
Epp (Hans Hirschmüller), vendedor ambulante de fruta, vive sob o poder de
uma sociedade que nunca o aceitou. Hans, porém, acabou por viver conformado,
aceitando a tal sociedade num sofrimento calado de resignação. Afinal, a grande guerra não
tinha acabado assim há tão pouco tempo e as famílias viviam sob suspeição
interior. O poder maternal desdenha Hans, a mulher não lhe é fiel, uma antiga
paixão surge de um flashback onde não aceita as rosas que ele tem para lhe entregar
mas que, no final, no funeral, surgem ao longe como parábola de uma vida
inconsequente. A filha assiste ao encontro sexual da mãe com o amante e, noutra
cena, leva um estalo por tirar macacos do nariz enquanto as duas aguardam à
mesa por Hans, que se embebeda no bar. Diz que só regressa a casa
quando bem entender, num acto de rebeldia estéril e infantil face ao torniquete feminino que o
envolve e castiga.
Os
cenários são despojados de decores e artefactos (como os filmes de Eric Rohmer),
para que nos concentremos no essencial, na violência que permanece ora latente
ora explosiva, como matriz de uma sociedade por deslindar.
Os
silêncios e as pausas entre as cenas surgem para dar justa enfase ao modo teatral
que sobrecarrega dramaticamente o personagem.
Esta
espécie de ribalta, tão pouco realista, amplia o rigor do sofrimento e evidencia
o fulcro da violência que a sociedade oferece a Hans para que sublime todas as suas
frustrações.
Até
as lágrimas finais são de glicerina. É que a realidade só pode mesmo ser
assistida através das cortinas do palco de Fassbinder.
jef,
novembro 2022
«O
Mercador das Quatro Estações» (Händler der Vier Jahreszeiten) de
Rainer Werner Fassbinder. Com Hans Hirschmüller, Irm Hermann, Hanna Schygulla,
Kurt Raab, Karl Scheydt, Andrea Schober, Gusti Kreissl, Ingrid Caven, Heide
Simon, Peter Chatel, Elga Sorbas, Lilo Pempeit, Walter Sedlmayr, El Hedi ben
Salem, Marian Seidowsky. Argumento: Rainer Werner Fassbinder. Cenários: Kurt
Raab. Guarda-roupa: Uta Wilhelm e Kurt Raab. Fotografia: Dietrich Lohmann. RFA,
1971, Cores, 89 min.
Sem comentários:
Enviar um comentário