Revê-lo
agora, em cópia restaurada, num ecrã grande e com idosa maioridade é um acto de
compreensão estética e ética do mundo.
Um
filme sobre a palavra e o poder, vindo do teatro, filmado em palco isabelino,
três ou quatro estruturas ostensivamente cénicas, sobrepostas, a cama no centro, onde as figuras
femininas se cruzam e interpretam as suas próprias angústias, as suas próprias
razões, à luz do próprio olhar cruzado, silenciado, ofendido ou assumido, negando em
cada cena tudo aquilo que terá sido dito ou assumido na cena anterior. Como
tantas vezes acontece ao longo de uma vida inteira. Aqui em duas horas e sobre
o olhar de manequins-espelho, maquilhagens-máscara, lágrimas teatrais,
guarda-roupa ostensivamente dramático, exuberante, irreal.
Fassbinder
prova-nos que um filme de sucesso comercial pode ser tão pouco comercial, tão
incomum, tão heterodoxo, tão esteticamente plástico, tão contido e estilizado. Tão
clássico. Tão teatral no sentido em que no teatro tudo o que não é visto é por
nós assegurado como verdade. A verdade do amor como forma de negar a liberdade
ao outro. A verdade do poder como forma de subjugar o afecto. A verdade de
assumir a submissão como modo de aceitar um amor silenciado. Desde a tragédia
grega, Shakespeare, Brecht, Ibsen ou Bergman.
Todo
o acto dramático parece condensar-se na relação da recém-divorciada Petra von
Kant (Margit Carstensen) com a jovem sedenta de futuro e liberdade Karin (Hanna
Schygulla), sob o olhar envidraçado e assumidamente submisso da secretária Marlene
(Irm Hermann), em contraponto com a resignada, talvez invejosa, Sidonie
(Katrin Schaake). Também em conflito consigo própria e olhando-se ao espelho nos
olhares de sua mãe Valerie (Gisela Fackeldey) e de sua filha Gabi (Eva Mattes).
Valerie reencontrou Deus, Gabi, iniciou-se no amor adolescente.
Afinal,
a história do poder e da submissão no mundo nascido este do recanto da paixão e das
entranhas femininas.
jef,
novembro 2022
«As
Lágrimas Amargas de Petra von Kant» (Die Bitteren Tränen der Petra von Kant)
de
Rainer Werner Fassbinder. Com Margit Carstensen, Hanna Schygulla, Katrin
Schaake, Eva Mattes, Gisela Fackeldey, Irm Hermann. Argumento: Rainer Werner
Fassbinder. Produção: Rainer Werner Fassbinder, Michael Fengler Cenários:
Kurt Raab. Guarda-roupa: Maja Lemcke. Fotografia: Michael Ballhaus. RFA, 1972, Cores,
89 min.
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