Cinema Teatro Teatro Cinema. Em jeito de
crónica.
Marivaux tem um efeito muito benéfico na
minha memória, logo, concorre fortemente para a minha compreensão do lugar que
habito.
Não sou capaz de esquecer a subida ao
Capitólio, no Parque Mayer, por umas escadas rolantes tremelicantes, empurrado
pela minha Mãe, e por ela acompanhado, para ver «A Ilha dos Escravos» (e a
«Herança») pelo tão recente Teatro da Cornucópia. 1974.
Lembro-me de muitas almofadas e dos
actores pisarem sem pisar, em desequilíbrio aparente, uma ilha onde os
náufragos pretendiam mudar de estratégia. Criados a quererem ser patrões,
patrões a seduzirem criadas que desejam as mordomias da patroa. Na altura, não
entendi como aquelas comédias estavam na origem de uma nova ideia de Revolução.
Não a dos Cravos, mas a da Bastilha. Marivaux, Beaumarchais…
Não entendi que a comédia trazia dentro
a diversão mas também o modo diferente. Continha o tempo das palavras que faz
sentido no interior da elegância das ideias. Era adolescente e espantava-me com
as ruas, os plenários, as palavras e as cantigas como armas.
Mas Marivaux lá ficou nos interstícios
da memória, como a Cornucópia, o espaço do Capitólio, a Revolução. Também a
minha Mãe. Desmesurando o meu Tempo e o meu Lugar, para sempre. Assim Sou.
Reencontro-o em «As Falsas Confidências»,
num belo texto sobre praticamente nada, apenas o amor e o dever da compreensão
do outro e a diversão do mal-entendido e da mentira como princípio de sedução,
de expectativa, de amizade, de crítica da moral. Luc Bondy, que falecia pouco
depois das filmagens, manteve a encenação durante a noite no palco do Théâtre
de l’Odéon enquanto, à luz do dia, dispunha os actores em todos os espaços do
edifício. Do foyer aos bastidores, da casa das máquinas à cozinha, deixando a
mais fina intimidade nas mãos de um conjunto de actores que se digladiam para
confundir e unir os corações carentes e amáveis de Araminte (Isabelle Huppert)
e Dorante (Louis Garrel).
Um trabalho de minúcia e devoção pela
construção cenográfica, pela definição dos caracteres, pela inflamação do
critério da palavra.
Marivaux. Um retorno ao presente da
minha memória grata que, deste modo, se vai modificando e me vai fornecendo
dados para melhor compreender onde se situará o meu futuro.
jef,
julho 2017
«As
Falsas Confidências» (Les Fausses Confidences) de Luc Bondy. Com Isabelle Huppert, Louis Garrel, Bulle Ogier, Yves
Jacques e Jean-Pierre Malo. França, 2016, Cores, 82 min.
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