Quando, em 1921, Luigi Pirandello escreveu «Seis Personagens
à Procura de um Autor», essa peça quase ingovernável onde as personagens
invadem o palco revoltadas com o decorrer dos acontecimentos e a ausência inepta
do autor-encenador, o dramaturgo de Agrigento desconhecia que, 40 anos depois,
surgiria uma extraordinária sequela, não menos bela, não menos louca, história total, real, demente, comovente, onírica,
coerente, abstracta econsciente, esta extraordinária fábula fantasiada por Federico
Fellini e pela sua legião de trabalhadores-cúmplices.
Um ajuste de contas consigo próprio e com o tempo que passa, com o
processo criativo e a obsessiva página em branco de Mallarmé, também com todos
os que veneram a obra do seu duplo Guido (Marcello Mastroianni) e tanto lhe
exigem. Também com os críticos furiosos que acabam enforcados. Uma espécie de
pedido de desculpa perante as lágrimas da abandonada e sempre próxima mulher
Luisa (Anouk Aimée), com a amante abandonada Carla (Sandra Milo), mas sempre ali
ao lado.
Personagens preteridas tal como a fé em busca de uma centelha
de fé, como a infância reprimida, a paternidade, a maternidade, a possível
doença, o fim à vista…
Uma troca acalorada de argumentos com outro Mastrioanni, o
jornalista sem escrúpulos mas em consciência do fim do mundo, Marcello Rubini
de «A Doce Vida», realizado três anos antes.
Talvez uma confissão à beira de um confessionário onde cabe o
mundo todo e o seu circo, reinventado pelo ilusionismo de Maurice (Ian
Dallas) que obriga Guido a ir em frente e a lançar a nave espacial aos céus, fazendo
descer pela escadaria, irmanados, todos, agora vestidos de branco, mortos e vivos,
rindo e dançando, seguindo de mãos dadas a banda filarmónica tocada por palhaços
e dirigida por aquela criança flaustista, também ela de branco, que se vai
desvanecendo no ecrã.
«A vida é uma festa, vamos vivê-la.», repete Guido pegando na
mão de Luisa e dirigindo-a para a roda.
jef, setembro 2020
«Oito e Meio» (Otto e Mezzo) de Federico Fellini. Com
Marcello Mastroianni, Claudia Cardinali, Anouk Aimée, Sandra Milo, Rosella
Falk, Madeleine Lebeau, Caterina Boratto, Barbara Steele, Mario Pisu, Guido
Alberti, Mario ConocchiaJean Rougeul, Edra Gale, Ian Dallas, Annibale Ninchi,
Giuditta Rissone, Tito Masini, Yvonne Casadei, Marco Gemini. Argumento:
Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tulio Pinelli, Brunello Rondi. Fotografia: Gianni
Di Venanzo. Música: Nino Rota. Guarda-roupa: Piero Gherardi. Produção: Angelo
Rizzoli. Itália, 1965, P/B, 114 min.
Sem comentários:
Enviar um comentário