sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Sobre os livros «Amores» e «Arte de Amar» de Ovídio e «Caminhos do amor em Roma» de Carlos Ascenso André. Cotovia, 2006






É nu o Amor

 

“alguma vez terá fim o teu amor,

ó poeta, tão teimoso no teu assunto?”

Ovídio, “Amores”, 3.1.15-16

 

Carlos Ascenso André pode afirmar, através do seu meticuloso estudo sobre o amor em Roma, que Ovídio é exímio em contradizer-se. Porém, mais incoerente do que o poeta é a essência própria do amor. Ovídio terá, assim, por atenuante, as ínvias características do tema que apaixonou tanto os mestres da antiguidade como os posteriores mestres académicos que passaram uma vida a dissecar tão determinantes elegias.

Se o gozo no fingimento e a técnica da dissimulação fossem, afinal, os únicos alicerces da sedução, esse patamar intermédio para o final usufruto do amor, aqui tomado pelo contínuo encadeado de efémeros actos de prazer, então por que razão os poetas explicitariam também a sofrida escravidão face ao objecto amado quando este lhes é recusado em permanência? Se Roma do séc. I a. C. não valorizasse o prolongado, quantas vezes doloroso, romantismo que impregna o sentimento maior, então por que versejariam desta forma os poetas que aos salões eram chamados para encantar os convivas? Deste modo, Cíntia não seria apenas um devaneio para Propércio, nem Lésbia o fútil objecto do amor de Catulo. Nem mesmo Délia, Némesis ou Márato caprichos momentâneos para a libido de Tibulo. Quanto valeria o sentimento que Corina despertava em Ovídio, esse poeta, o mais prazenteiro de todos, executor da exaustiva e tecnicista cartilha da «Arte de Amar»? Então não escreve ele que a conquista do amor deve ser conseguida sob o ferro da insinuação e do disfarce?

Na realidade, Ovídio surge como dono da excelente arte de manipular circunstâncias, oferecendo a táctica venatória ao predador ainda inexperiente, no entanto, logo a seguir, parece não se importar em contradizer-se, embora talvez não tanto como outros contemporâneos, surgindo como presa vulnerável manietada pelo assombro do seu enlevo, expondo-se a um fascínio cuja verdade imponderável se situa a meio termo entre o prazer e o pudor.

Porém, essa mesma verdade não se encontra na essência do facto narrado poeticamente, ausente que está há mais de vinte séculos, mas na interpretação dada à palavra que o poeta registou e na posterior adaptação trabalhada pela arte do tradutor. A tarefa de Carlos Ascenso André reveste-se, por isso, de uma particular responsabilidade pois deve consolidar e transmitir, na actualidade da língua portuguesa, a sua visão sobre a sociedade romana, a língua latina e o conceito pessoal do escritor sem, contudo, ferir a eterna chama volátil do poema.

«Caminhos do amor em Roma» é a obra que introduz, circunstancia e justifica o citado princípio do contraditório, sem a qual «Amores» e o sequente «Arte de Amar» tornar-se-iam apenas mais uma versão portuguesa da poética amorosa de Ovídio. Este conjunto de obras, à qual se juntará possivelmente «Cantos de tristeza», reflectindo a poesia de Ovídio sobre o exílio, evidencia o notável panorama actual da academia portuguesa. Associada a uma corajosa política editorial, a recente universidade extravasa os portões da escola e entrega nas mãos do leitor comum não só magníficas traduções, realizadas a partir dos originais e respeitando a sua métrica poética, como associa textos como é o caso deste estudo que, de forma clara e pedagogicamente intuitiva, concede novos patamares de conhecimento a uma leitura contemporânea da literatura ancestral, património cultural da humanidade.

Na ausência de semelhante enquadramento, talvez não fosse tão perceptível a deliciosa insolvência que une, separando-os, os três livros incluídos em «Arte de Amar» e aqueloutros que estruturam «Amores». Se na primeira colectânea, de índole marcadamente doutrinal, a aprendizagem reparte-se pela arte da sedução, com um livro dedicado aos homens e outro às mulheres, e ainda um terceiro onde se explicita a técnica de prolongar o amor; em «Amores», as elegias possuem um carácter mais livre, lúdico e espontâneo quanto ao desenvolvimento dos temas e à sua sequência (se for lícito aplicar tais adjectivos aos clássicos da literatura).

Assim, a «Arte de Amar» celebra o leviano hedonismo amoroso, expondo, alínea por alínea, o método mais apropriado para laçar as vítimas, levando por vencidas as adversárias, fossem elas casadas ou não. Neste âmbito, o adultério e o matrimónio são talvez os temas literariamente mais interessantes aqui tratados, relativamente aos quais os textos e notas complementares de Carlos Ascenso André vêm sublinhar como os actos de amor na Roma de então se regiam sob pragmáticas bases sociais, determinadas pelo contrato e pela detenção do poder, obrigando inclusive o poeta a excluir tacitamente certas mulheres do alvo da sedução, dado o seu estatuto não o permitir, por respeito possivelmente aos mais recentes decretos do imperador Augusto.

Em «Amores» são já bastante mais nítidos os exemplos onde o poeta se vê, em certa medida, prisioneiro desse irrequieto sentimento que viria a consolidar, impregnando, séculos mais tarde, as poesias renascentista e romântica. São poemas que desvendam o espírito maior de Ovídio na exploração dos temas através de uma complexa assunção sintáctica. Exemplos dessa mais bela e contraditória veia poética são as elegias onde Corina resplandece numa tarde que declina (1.5), onde se repudia a invejosa pressa da Aurora (1.13) ou onde o protagonismo é roubado por um anel oferecido (2.15).

Qual será então mais verdadeiro, o pragmatismo que reduz o amor a um mecanismo aperfeiçoado pelos profissionais da sedução, apartando-o do simulacro contratual da sociedade que deseja a perpetuidade de bens e descendência, ou, pelo contrário, a concessão que lhe atribui as doces virtudes e as penas amargas de uma prisão desejada?

Quem responde é o contraditório dos poetas latinos da antiguidade que, na sua maior ou menor ingénua leviandade, melhor revelam a verdade suprema: o amor foi, é e será o maior sentimento de todos os tempos, a melhor criação da humanidade, ser tão único e incongruente que jamais alguém o poderá cobrir com as delicadas vestes da ilusão.

 

 “É nu o Amor e não aprecia artefactos de beleza.”

 

(Propércio, 1.2.8) 

 

p.s. para quando a tradução e edição das cartas apócrifas de Ovídio «Heroides»?         

 

jef, novembro 2006

«Arte de Amar» e «Amores» de Ovídio. Tradução de Carlos Ascenso André, Cotovia, 2006

«Caminhos do amor em Roma – sexo, amor e paixão na poesia latina do séc. I a. C.» de Carlos Ascenso André, Cotovia, 2006

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