A História momentânea da literatura.
A
maior valia trazida pela recente vaga de traduções directas de clássicos gregos e
latinos liga-se à plena consciência da sua contemporaneidade. Sem negar a
soberana importância de tais obras, razão primeira que as fez chegar até nós
através dos séculos, a nova guarda de tradutores trabalha directamente para
os leitores de hoje. Negando essa comum, e talvez presunçosa, tendência entre
historiadores e literatos de tentarem fixar as obras no futuro, esgotando-as e
cumulando-as de epítetos e prelecções que retiram o aliciante carácter de
surpresa à leitura. Eles entregam os livros simplesmente à normal compreensão
(diversão) do amante da leitura. É o caso da presente edição de «Satyricon» de
Petrónio. O tradutor Delfim F. Leão reconhece que o texto, escrito
presumivelmente no século I sob os auspícios do extravagante Nero, poderia
naturalmente apresentar-se sobre diversas perspectivas e códigos de linguagem.
Por isso, na página de rosto a obra é apresentada como a “versão portuguesa de
Delfim F. Leão”. A escolha dos instrumentos linguísticos recai então sobre os
que sugerem o maior afastamento do tradutor, despojando a obra de explicações
interlineares e adaptando o vocabulário de forma a colocar o texto dentro do
tempo do leitor e, em simultâneo, acentuando a sensação de clivagem entre o
género erudito e o “popular”. Porque “Satyricon” reflecte a sua modernidade
narrativa, precisamente, numa fragmentação de forma e conteúdo, que o tempo
apenas ajudou a aprofundar, sonegando-lhe parte considerável dos livros que na
origem o integravam. Uma série de relatos mais aventurosos que venturosos fazem
circular o trio ou quarteto amoroso (a contar com o poeta malquisto mas astuto
gerador de heranças, Eumolpo) num rodopio de situações que ostentam a ironia
sobre a arte, o sexo, a tradição literária ou os novos-ricos, mais como síntese
dialéctica, contraponto dramático, promiscuidade de estilos, do que como
crítica moralmente explícita ao poder ou aos costumes. Um facto que, apesar de
tudo, não terá poupado Petrónio do ‘suicídio induzido’, executado contudo de
forma tão teatral como a sua obra, uma ironia negra que faz lançar sobre o
final canibalesco de «Satyricon» o véu pesado da tragédia.
Sem comentários:
Enviar um comentário