segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Sobre o livro «Satyricon» de Petrónio. Tradução de Delfim F. Leão. Cotovia, 2005










A História momentânea da literatura.

A maior valia trazida pela recente vaga de traduções directas de clássicos gregos e latinos liga-se à plena consciência da sua contemporaneidade. Sem negar a soberana importância de tais obras, razão primeira que as fez chegar até nós através dos séculos, a nova guarda de tradutores trabalha directamente para os leitores de hoje. Negando essa comum, e talvez presunçosa, tendência entre historiadores e literatos de tentarem fixar as obras no futuro, esgotando-as e cumulando-as de epítetos e prelecções que retiram o aliciante carácter de surpresa à leitura. Eles entregam os livros simplesmente à normal compreensão (diversão) do amante da leitura. É o caso da presente edição de «Satyricon» de Petrónio. O tradutor Delfim F. Leão reconhece que o texto, escrito presumivelmente no século I sob os auspícios do extravagante Nero, poderia naturalmente apresentar-se sobre diversas perspectivas e códigos de linguagem. Por isso, na página de rosto a obra é apresentada como a “versão portuguesa de Delfim F. Leão”. A escolha dos instrumentos linguísticos recai então sobre os que sugerem o maior afastamento do tradutor, despojando a obra de explicações interlineares e adaptando o vocabulário de forma a colocar o texto dentro do tempo do leitor e, em simultâneo, acentuando a sensação de clivagem entre o género erudito e o “popular”. Porque “Satyricon” reflecte a sua modernidade narrativa, precisamente, numa fragmentação de forma e conteúdo, que o tempo apenas ajudou a aprofundar, sonegando-lhe parte considerável dos livros que na origem o integravam. Uma série de relatos mais aventurosos que venturosos fazem circular o trio ou quarteto amoroso (a contar com o poeta malquisto mas astuto gerador de heranças, Eumolpo) num rodopio de situações que ostentam a ironia sobre a arte, o sexo, a tradição literária ou os novos-ricos, mais como síntese dialéctica, contraponto dramático, promiscuidade de estilos, do que como crítica moralmente explícita ao poder ou aos costumes. Um facto que, apesar de tudo, não terá poupado Petrónio do ‘suicídio induzido’, executado contudo de forma tão teatral como a sua obra, uma ironia negra que faz lançar sobre o final canibalesco de «Satyricon» o véu pesado da tragédia.


jef, junho de 2006

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