A doce genealogia do sangue
Quando comparado com os grandes livros do monoteísmo, talvez
a «Ilíada» não coleccione um número de leitores tão colossal como o que aqueles
angariaram ao longo de séculos através das respectivas corporações religiosas.
Contudo, ao serem confrontadas as legiões de estudiosos apaixonados, a
influência moral não dogmática e, talvez mais importante, a intrínseca
estrutura literária ou essa característica cultural que assenta na simples
fruição da leitura, então não restam dúvidas: o livro grego ganha destacado
sobre a «Bíblia» ou o «Alcorão».
Mas se é totalmente inútil esgrimir moles de seguidores ou
volúpias de leitura entre tais monumentos da bibliofilia, já se torna bastante
mais interessante questionar o facto de esta obra prevalecer como marco
espiritual, no sentido estritamente cultural, quando não é suportada por
qualquer pesada instituiçãp universal e, inclusive, veicula uma concepção do
divino plural, tão pouco apadrinhada pelo comportamento ocidental
contemporâneo.
A resposta ao fenómeno poderá estar no facto de ser uma obra
que, contendo o catálogo de pistas e sinais respeitante a todos os valores
comportamentais e psicológicos do ser humano, não os submete ao julgamento de
um deus descrito como solução final para os seus desaires e desonras. Ou seja,
em vez de arregimentar o pensamento num modo único e colectivo, multiplica-o
pelo diverso individualizado, entregando-o ao leitor sobre a forma de uma
magnífica narrativa una e intransigente.
Essa característica deriva, de forma muito pragmática, da
base da cultura greco-latina que, em todo o caso, se rege pelo primeiro
fundamento do teatro: o diálogo. Ao admitir a existência de vários deuses,
poderes e ideias, será lógico pressupor igualmente que aqueles, no início,
entrem em comunicação, depois em conflito, mais tarde se conluiam e,
finalmente, se reequilibrem. Até nova desordem. Este é o princípio da narração,
da dialéctica, do universo e, por conseguinte, de uma sociedade humana que, há
bastante mais de trinta séculos, o teatro pretende estratificar.
Assim, e assumindo como verdade que a «Ilíada» é um livro que
contém maior depuramento estilístico que o seu consecutivo, «Odisseia»,
torna-se curioso que este último angarie maior entusiasmo público e tenha sido
o primeiro a ser desbravado pela pena de Frederico Lourenço. Ao serem colocados
frente a frente, agora que vertidos para português moderno pela mestria do
mesmo tradutor, também eles parecem entrar em diálogo, revelando-se quase
antagónicos, espelhos de naturezas distintas, deduzindo-se mutuamente como
invejassem o conceito alheio. O pomo que faz entrar as divindades na discórdia
talvez seja, uma vez mais, o teatro. Se na «Odisseia» o retorno à casa-mãe e o
reencontro é feito penosamente, ao fim de intermináveis anos, através de um
espaço imenso, quase ilimitado, de mar, penas e encruzilhadas heróicas,
deixando Ulisses cada vez mais só, mais exaurido mas também mais determinado;
na «Ilíada», o espaço e o tempo concentram-se numa partícula única: as praias e
muralhas de Ílion que se preparam para assistir ao derradeiro confronto entre
troianos e aqueus. Tal como sucede entre um palco e uma plateia, entre a arena
e a bancada. Apenas isso.
Só que o pouco ou o quase nada de um instante na batalha,
pode ser o tudo para a última dimensão humana. A sobrevivência ou a desonra. O
esquecimento ou a glória. No fundo, a morte como princípio de uma história e
não como o seu término. Mas se a «Bíblia» ou o «Alcorão» elegem também a morte
como o elemento supremo do culto e do oculto, negando-a para a explicar,
propulsionando a vida para dimensões extra-sensoriais, na «Ilíada» a morte
física é um elemento explícito da narrativa que desvenda a espiritualidade, a
razão e o desejo de uma sociedade em crise. E Aquiles é o seu símbolo assumido.
Enquanto centro absoluto da intriga, Aquiles desdobra-se como
catalizador colectivo do drama da guerra e do litígio social mas também como
ampliador solitário de cóleras vingativas e amores intangíveis. Em termos
existencialistas, representa a convergência de conflitos interiores:
geneticamente, não pertence nem aos deuses nem aos homens, vendo-se
constrangido e revoltado pela ausência de Briseida, sonegada por Agamémnon, mas
também pelo trágico anúncio da sua morte breve feito pela própria mãe, a deusa
Tétis. Em termos sociais, ele é motivo de todos os fracassos e antagonismos:
recusa-se a guerrear apesar de saber o garante da vitória para um dos lado da
peleja; ele que, pela sua atitude inicial, estabelece sucessivas clivagens e
alianças entre deuses, aqueus e até no próprio adversário. Tudo se verga
segundo os seus ditames e todos lhe dirigem atenções e súplicas. Aquiles
determina o curso da guerra e esta impõe-se ao curso da história.
Assim, a narrativa inicia-se ampla e livre, estabelecendo um
cenário circunscrito, quase orográfico, sobre muralhas e valas edificadas,
famílias e povos em formação castrense. Mostram-se os amores e os ódios na casa
dos deuses sancionando a eficácia dos duelos entre guerreiros. Descrevem-se
detalhadamente os esquadrões aliados com os comandantes, as suas conquistas, a
sua expansão. Conta-se a história familiar de cada herói caído por terra, a sua
galhardia e ímpeto bélico. Estabelece-se uma hierarquia de poder e valentia
entre os combatentes que parecem deixar as divindades muito aquém no respectivo
cumprimento deontológico. Aquiles e Heitor perfilam-se como os eleitos para
protagonizar o duelo final.
No entanto, Aquiles continua ausente... A guerra avança sem
solução, a morte adensa-se e os planos tornam-se progressivamente mais próximos
da vítima. A carnificina prossegue. A familiaridade permanece mas agora é
descrita através de cada corpo que cai na poeira, cada jorro de sangue que a
faz assentar, cada lança que trilha a carne. A genealogia, a anatomia ou a
silhueta das armas pormenorizam-se, fundem-se e tornam-se protagonistas de uma
acção que insinua o dolo e a tragédia. Ostenta-se a reluzente armadura de
Aquiles que será envergada por Pátroclo, mais tarde por Heitor. Também se
exibe, e com que minúcia, a divina armadura criada por Hefesto para o herói
desarmado pela sua própria cólera. A pura coragem belicista vai sendo
substituída por uma vocação viril para a morte que se deseja por redimir e apaziguar
paixões avassaladoras. A alma encarna a convicção de cada cadáver. A história
íntima dos corpos que tombam, mesmo os do adversário, sobrepõe-se à motivação
do colectivo militar. Ama-se a morte por não se poder mais amar a vida. O
majestático luto por Pátroclo anula o poder estratégico que o resgate de Helena
tem na narrativa. Assim, o herói prevalece, chorando, no centro da sociedade e
vence perante uma plateia que, em seu redor, presta tributo à sua dor maior.
Um extraordinário desenlace para uma história que parece
colar-se ao espírito cada vez mais militarizado das cidades modernas. Por que a
terá aperfeiçoado Homero ao longo de tantos anos? Por que a terá estruturado
desta forma: tradição? imposição das audiências? dever político aos mecenas? ou
apenas vocação poética? Sem precisarmos de grandes respostas, será razoável
centrarmo-nos nesta última convicção, já que o valor intrínseco da obra está,
fundamentalmente, no carácter explícito como a beleza se incorpora na sua
estrutura. Através dela, o poema concede a eternidade do sublime ao ser humano,
ao seu corpo, à sua esperança e ao seu desaparecimento. Por ela, afasta-se da
de outros grandes livros. Aí reside a sua modernidade e o maravilhoso desafio
da presente tradução.
jef, setembro 2005
Nota. Duas
pequenas sugestões. 1. Ler a introdução inclusa como posfácio. Lido no fim, o texto
essencial fornece pistas importantes para a necessária releitura da obra, não
condicionando o ambiente único de descoberta da primeira leitura. 2. Antes de
se atirar a primeira de muitas pedras ao filme, veja-se “Tróia” (Wolfgang
Petersen, 2004), como uma pós-moderna mas lícita alta comédia sobre a Grécia
antiga mas que deveria ter sido engendrada pelo mestre Giovanni Pastrone, lá
pela península itálica nos finais da primeira década do ido século XX.
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