terça-feira, 15 de setembro de 2020

Sobre o livro «Ilíada» de Homero. Tradução de Frederico Lourenço. Cotovia, 2005.

 

 








A doce genealogia do sangue

Quando comparado com os grandes livros do monoteísmo, talvez a «Ilíada» não coleccione um número de leitores tão colossal como o que aqueles angariaram ao longo de séculos através das respectivas corporações religiosas. Contudo, ao serem confrontadas as legiões de estudiosos apaixonados, a influência moral não dogmática e, talvez mais importante, a intrínseca estrutura literária ou essa característica cultural que assenta na simples fruição da leitura, então não restam dúvidas: o livro grego ganha destacado sobre a «Bíblia» ou o «Alcorão».

Mas se é totalmente inútil esgrimir moles de seguidores ou volúpias de leitura entre tais monumentos da bibliofilia, já se torna bastante mais interessante questionar o facto de esta obra prevalecer como marco espiritual, no sentido estritamente cultural, quando não é suportada por qualquer pesada instituiçãp universal e, inclusive, veicula uma concepção do divino plural, tão pouco apadrinhada pelo comportamento ocidental contemporâneo.

A resposta ao fenómeno poderá estar no facto de ser uma obra que, contendo o catálogo de pistas e sinais respeitante a todos os valores comportamentais e psicológicos do ser humano, não os submete ao julgamento de um deus descrito como solução final para os seus desaires e desonras. Ou seja, em vez de arregimentar o pensamento num modo único e colectivo, multiplica-o pelo diverso individualizado, entregando-o ao leitor sobre a forma de uma magnífica narrativa una e intransigente.

Essa característica deriva, de forma muito pragmática, da base da cultura greco-latina que, em todo o caso, se rege pelo primeiro fundamento do teatro: o diálogo. Ao admitir a existência de vários deuses, poderes e ideias, será lógico pressupor igualmente que aqueles, no início, entrem em comunicação, depois em conflito, mais tarde se conluiam e, finalmente, se reequilibrem. Até nova desordem. Este é o princípio da narração, da dialéctica, do universo e, por conseguinte, de uma sociedade humana que, há bastante mais de trinta séculos, o teatro pretende estratificar.

Assim, e assumindo como verdade que a «Ilíada» é um livro que contém maior depuramento estilístico que o seu consecutivo, «Odisseia», torna-se curioso que este último angarie maior entusiasmo público e tenha sido o primeiro a ser desbravado pela pena de Frederico Lourenço. Ao serem colocados frente a frente, agora que vertidos para português moderno pela mestria do mesmo tradutor, também eles parecem entrar em diálogo, revelando-se quase antagónicos, espelhos de naturezas distintas, deduzindo-se mutuamente como invejassem o conceito alheio. O pomo que faz entrar as divindades na discórdia talvez seja, uma vez mais, o teatro. Se na «Odisseia» o retorno à casa-mãe e o reencontro é feito penosamente, ao fim de intermináveis anos, através de um espaço imenso, quase ilimitado, de mar, penas e encruzilhadas heróicas, deixando Ulisses cada vez mais só, mais exaurido mas também mais determinado; na «Ilíada», o espaço e o tempo concentram-se numa partícula única: as praias e muralhas de Ílion que se preparam para assistir ao derradeiro confronto entre troianos e aqueus. Tal como sucede entre um palco e uma plateia, entre a arena e a bancada. Apenas isso.

Só que o pouco ou o quase nada de um instante na batalha, pode ser o tudo para a última dimensão humana. A sobrevivência ou a desonra. O esquecimento ou a glória. No fundo, a morte como princípio de uma história e não como o seu término. Mas se a «Bíblia» ou o «Alcorão» elegem também a morte como o elemento supremo do culto e do oculto, negando-a para a explicar, propulsionando a vida para dimensões extra-sensoriais, na «Ilíada» a morte física é um elemento explícito da narrativa que desvenda a espiritualidade, a razão e o desejo de uma sociedade em crise. E Aquiles é o seu símbolo assumido.

 

Enquanto centro absoluto da intriga, Aquiles desdobra-se como catalizador colectivo do drama da guerra e do litígio social mas também como ampliador solitário de cóleras vingativas e amores intangíveis. Em termos existencialistas, representa a convergência de conflitos interiores: geneticamente, não pertence nem aos deuses nem aos homens, vendo-se constrangido e revoltado pela ausência de Briseida, sonegada por Agamémnon, mas também pelo trágico anúncio da sua morte breve feito pela própria mãe, a deusa Tétis. Em termos sociais, ele é motivo de todos os fracassos e antagonismos: recusa-se a guerrear apesar de saber o garante da vitória para um dos lado da peleja; ele que, pela sua atitude inicial, estabelece sucessivas clivagens e alianças entre deuses, aqueus e até no próprio adversário. Tudo se verga segundo os seus ditames e todos lhe dirigem atenções e súplicas. Aquiles determina o curso da guerra e esta impõe-se ao curso da história.

Assim, a narrativa inicia-se ampla e livre, estabelecendo um cenário circunscrito, quase orográfico, sobre muralhas e valas edificadas, famílias e povos em formação castrense. Mostram-se os amores e os ódios na casa dos deuses sancionando a eficácia dos duelos entre guerreiros. Descrevem-se detalhadamente os esquadrões aliados com os comandantes, as suas conquistas, a sua expansão. Conta-se a história familiar de cada herói caído por terra, a sua galhardia e ímpeto bélico. Estabelece-se uma hierarquia de poder e valentia entre os combatentes que parecem deixar as divindades muito aquém no respectivo cumprimento deontológico. Aquiles e Heitor perfilam-se como os eleitos para protagonizar o duelo final.

No entanto, Aquiles continua ausente... A guerra avança sem solução, a morte adensa-se e os planos tornam-se progressivamente mais próximos da vítima. A carnificina prossegue. A familiaridade permanece mas agora é descrita através de cada corpo que cai na poeira, cada jorro de sangue que a faz assentar, cada lança que trilha a carne. A genealogia, a anatomia ou a silhueta das armas pormenorizam-se, fundem-se e tornam-se protagonistas de uma acção que insinua o dolo e a tragédia. Ostenta-se a reluzente armadura de Aquiles que será envergada por Pátroclo, mais tarde por Heitor. Também se exibe, e com que minúcia, a divina armadura criada por Hefesto para o herói desarmado pela sua própria cólera. A pura coragem belicista vai sendo substituída por uma vocação viril para a morte que se deseja por redimir e apaziguar paixões avassaladoras. A alma encarna a convicção de cada cadáver. A história íntima dos corpos que tombam, mesmo os do adversário, sobrepõe-se à motivação do colectivo militar. Ama-se a morte por não se poder mais amar a vida. O majestático luto por Pátroclo anula o poder estratégico que o resgate de Helena tem na narrativa. Assim, o herói prevalece, chorando, no centro da sociedade e vence perante uma plateia que, em seu redor, presta tributo à sua dor maior.

Um extraordinário desenlace para uma história que parece colar-se ao espírito cada vez mais militarizado das cidades modernas. Por que a terá aperfeiçoado Homero ao longo de tantos anos? Por que a terá estruturado desta forma: tradição? imposição das audiências? dever político aos mecenas? ou apenas vocação poética? Sem precisarmos de grandes respostas, será razoável centrarmo-nos nesta última convicção, já que o valor intrínseco da obra está, fundamentalmente, no carácter explícito como a beleza se incorpora na sua estrutura. Através dela, o poema concede a eternidade do sublime ao ser humano, ao seu corpo, à sua esperança e ao seu desaparecimento. Por ela, afasta-se da de outros grandes livros. Aí reside a sua modernidade e o maravilhoso desafio da presente tradução.

 

jef, setembro 2005

Nota. Duas pequenas sugestões. 1. Ler a introdução inclusa como posfácio. Lido no fim, o texto essencial fornece pistas importantes para a necessária releitura da obra, não condicionando o ambiente único de descoberta da primeira leitura. 2. Antes de se atirar a primeira de muitas pedras ao filme, veja-se “Tróia” (Wolfgang Petersen, 2004), como uma pós-moderna mas lícita alta comédia sobre a Grécia antiga mas que deveria ter sido engendrada pelo mestre Giovanni Pastrone, lá pela península itálica nos finais da primeira década do ido século XX.

 

 

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