Como uma pedra na engrenagem.
Sofro de uma certa convicção. À medida que o mundo parece
resvalar encosta abaixo em direcção à iniquidade global da violência, torna-se
necessário, por instantes, parar o nosso próprio movimento induzido e tentar
contrariar a aceleração do planeta. Talvez esta seja uma convicção simples,
repetida, banalizada por milhares de canais de comunicação, mas o que pretendo
referir não diz respeito apenas ao globo terrestre mas, essencialmente, ao pequeno
universo que nos rodeia, ao mundo que nos preenche e que por vezes, também ele,
vai desandando direito às mais baixas cotas do inconsciente belicista. (Por
isso, talvez devesse falar de intuição em vez de convicção.) Seguindo essa
perspectiva, há que reavaliar estratégias de travagem, apontar as baterias da
consciência, fazer as melhores escolhas. Fortalecer o nosso sistema imunitário,
preparar os novos embates, ouvir a melhor música. Segurar os livros
importantes, dar à leitura um carácter mais eficaz, sem nunca descurar o
significado de prazer que desejamos para ela, entregando-nos depois a tal
prazer sem os subterfúgios do desconhecimento.
Penso, desta forma, justificar a inclusão nas páginas da revista
Op. não de uma novíssima edição, acabada de sair e a cheirar ainda à tinta da
novidade, mas da enésima reedição da colectânea poética, cuja selecção,
tradução e prefaciação se deve a Paulo Quintela. Comemora-se agora os sessenta
anos da primeira edição do trabalho desse que foi o primeiro grande e devoto
divulgador em Portugal de Friedrich Hölderlin. O Poeta que deveria ficar para a
História como um dos garantes de que o mundo afinal não se vai estilhaçar, lá
em baixo, no vale da mediocridade. (Desculpem-me a imodéstia desta nova
intuição... Ou deveria chamar-lhe desejo?)
Contudo e apesar da introdução, pouco poderá dizer-se sobre a
poesia de Hölderlin, pois o seu universo resplandecente prende-se mais ao
delicado mundo emocional que o pensamento, pessoal e intransmissível,
desenvolve em cada um de nós, a cada nova leitura de cada um dos seus poemas.
Da forma mais íntima, subterrânea. Uma claridade espiritual que o levou a
acatar, com toda a humildade, a vontade dos Deuses que dele fizeram aedo privilegiado
na transmissão da raiz do sentimento ao grande Povo sabedor. Uma
responsabilidade, uma clarividência tão brutal e definida, que o levaria a
passar metade da vida num estado a que a ingratidão humana vulgarmente chamava
loucura. Na realidade, uma expressão racional e linguística que, de um só
lance, uniu a democracia endeusada da heróica Grécia à democracia contemporânea
edificada no povo pela Revolução Francesa. Uma concessão que entrega ao Homem o
fundamento e a prova da deusa Natureza, talhada em longos hinos e elegias do
clássico Grego ou em pequenos e sussurrados trechos da contemplação romântica
ou da máxima Liberdade que o existencialismo proclamaria séculos mais tarde.
Tudo ele desafia, porque questiona, num lânguido bocejo ou na fúria da razão: a
árvore, o amor, a infância, o poder e a morte. A poesia. Para, no final,
rematar, em suprema dissertação, tão humilde quanto inevitável:
“Mas o que fica, os poetas o fundam.”
Eis um livro a ser tido como Bíblia. Para ser lido de forma
ébria ou razoável, complacente, de peito aberto, coração quente, espírito
livre. Adormecido ou exaltado. Franco ou temeroso. Em dias de chuva e de sol.
Uma obra diante da qual os velhos se curvam reverentes face à beleza que se
desprende dos ramos de um bosque, da alegria de um vinhedo, da turbulência de
um rio, escutando o Poeta como se fosse Deus finito falando aos homens sem
falsa sabedoria ou modesta ingenuidade. Ele é grande porque sabe. Maior, porque
sabe pronunciar o que os Deuses sussurram.
(E se tais convicções, intuições ou desejos, escritos em nome
próprio, vos parecerem presunção, então aceitem este texto como puro acto de
publicidade. Comprem o livro e coloquem-no junto à cabeceira. Para sempre.
Talvez, assim, uma pedra se desprenda do caminho e ajude a arrepiar as rotações
desta Terra obscurecida pelas nuvens do indesejável...)
jef, junho 2004
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