Não podemos confundir pressentimentos com os instintos que
são coisa muito mais imediata. Diz-se de Albert Mulder, médico, que gosta de
observar os rapazes. Tem uma irmã.
«A tíbia de um animal tem exactamente a mesma inteligência
que a nossa, não há diferença. Um osso estúpido – O importante é o osso do
meio!» – diz Vassliss Rânia, com as mãos em sangue das peças de carne que vende
no talho. Tem um irmão, Gada, que dizem estar louco. Não trabalha e fica em
casa a aprender a tocar violino.
Maria Llurbai percorre as ruas à chuva. Foi posta na rua pelo
marido, Walter Llurbai, depois de ter ido com Kahnnak. Este, com vinte anos, era
a erva daninha da casa e recorda que leu a história de, num país pobre, um
pedinte andrajoso mas de grande audácia estende a mão e exige: «Estou vivo,
dá-me!». Kahnnak um dia será preso.
«Nos cemitérios, usam-se fórmulas fixas de linguagem porque
os cidadãos, por pudor, fingem-se menos vivos. A cidade não é excelente na
circulação de substantivos fortes, mas em redor dos mortos a mediocridade
agrava-se.» Por fim, todos se reúnem em torno do silêncio de uma canção triste,
próxima da morte.
«– O osso do meio!! Percebe? O que é necessário é encontrar o
osso do meio de cada coisa, e depois parti-lo!, assim, de uma só vez!»
O 43º Caderno de Gonçalo M. Tavares está colocado na secção
de “O Reino”. Aqui, permanecemos nesse mundo estranho que insiste ser a
felicidade um corpo estranho ao dia-a-dia, assunto mais pressentido que vivido,
toldado pela guerra sistemática que é uma das células-génese da humanidade.
Gonçalo M. Tavares escreve prosa forte como se escrevesse
poesia adúltera.
jef, junho 2022
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