O que mais estranho neste livro é a opção do título português
relativamente ao circunstancial título original francês: «En l’Absence des
Hommes». Se o assunto charneira do livro resulta, efectivamente, dessa terrível
guerra de trincheiras que foi a Primeira Guerra Mundial, todo o seu corpo vital
e emotivo, toda a estrutura do enredo tem a ver com a partida, o momento
efémero, a ausência física dos homens entre os homens. Só para não afirmar ainda,
talvez fosse presunçoso dizê-lo, que é um romance sobre a clivagem entre classes sociais.
Claro que a sociedade burguesa parisiense, no Verão de 1916,
andaria já esquecida de guerras franco-alemãs e de comunas e olharia com
alheamento social e geográfico para as batalhas renhidas que se travavam em Verdun que, aquela sua casta actualidade, seria ainda coisa longínqua e de
particular desinteressante. Aprendi eu essa perspectiva ao ler «O Mundo de
Ontem» de Stefan Zweig.
Pois é essa carismática diferença social que fica em
evidência na vida social diletante do inteligente jovem de dezasseis anos Vincent de L’Etoile
quando se vê confrontado com a paixão desmedida mas ferida de guerra de
Arthur Valés, filho da governanta da casa, Blanche, quando regressa a casa
por uma semana de licença. Coincidentemente, no mesmo tempo, um literato de
reconhecido nome na sociedade parisiense, e que vive acastelado no Hotel Ritz,
nota com extremo interesse a beleza quase de criança de Vincent: olhos verdes,
cabelo preto. O reconhecido homem das letras francesas assina Marcel P.
Se a primeira parte (A Entrega dos Corpos) se move entre a
clausura apaixonada, a proximidade física do quarto de Vincent e a distância
formal e cerimoniosa do quarto de Marcel, na segunda (Separação dos Corpos), o
romance torna-se epistolar. Na terceira (De Corpo e Alma) a conclusão da
ausência na guerra e na morte é a sua própria inelutável confirmação.
Um romance terno e comovente, toldado pelo luto mas também
pela perspicácia galante dos diálogos em discurso indirecto (Digo: a sensualidade
é uma inteligência) que faz de Vincent um quase patrono moral para Arthur ou Marcel.
Sem querer fazer comparações irrealistas, por vezes a certeza de Vincent, a ansiedade de Arthur ou a distância de Marcel fizeram recordar-me a atmosfera de romances franceses como «Alexis» de Marguerite Yourcenar ou «Olhos Azuis, Cabelo Preto» de Marguerite Duras.
jef, março 2022
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