Um
filme único. Uma espécie de redenção visual e espiritual do quotidiano e da
humanidade. Imprescindível. Uma obra que, surpreendentemente e infelizmente, se
torna urgente ver (ou observar) no dia de hoje.
Uma
bola de futebol eleva-se de um recinto ao ar livre onde duas equipas de
crianças jogam afincadamente. Certamente, mais tarde, irão ver jogar Lionel
Messi pela Argentina, no Mundial. Essa bola cai depois nas águas turbulentas no
rio Rioni que banha a cidade georgiana de Kutaisi e o espectador fica a olhá-la
com demora enquanto a voz-off do realizador Alexandre Koberidze nos inquere
sobre a necessidade para as gerações vindouras de, hoje, se estarem a realizar
filmes enquanto o planeta se encaminha para a catástrofe ecológica. Talvez seja
o único momento em que somos chamados a concentrarmo-nos no lado de fora do
cinema.
Porque
todo o filme é uma espécie de parábola-lenda-documentário sobre uma cidade
velha e harmoniosa, sem tempo, onde se circula pacificamente pelas ruas, pelos
cafés, também pelas margens de um rio que parece nunca as invadir apesar dos
rápidos que o sustentam. Onde os cães também escolhem o melhor ecrã para
assistir aos jogos do Mundial. Uma ponte branca, outra vermelha.
É
a história de uma maldição que recai sobre dois jovens que acabam de se
apaixonar à primeira vista quando os seus passos se cruzam e se desorientam no
percurso que deviam tomar. Um livro cai-lhes entre os pés, por duas vezes. No
dia seguinte, acordam com fisionomias diferentes e, por isso, ficam
impossibilitados de se reconhecer. É a história de Lisa (Ani Karseladze / Oliko
Barbakadze) e Giorgi (Giorgi Bochorishvili / Giorgi Ambroladze) que, apesar de
tudo, não se afastam do local marcado para o encontro.
Esta
lenda, em jeito de Xerazade, é apenas o pretexto para Alexandre Koberidze fazer
com que fechemos os olhos durante três segundos. Voltamos a abri-los, depois, e
entrarmos livres de tormentos numa dimensão redentora onde a benevolência nos
faz espectadores de uma cidade lenta com os seus episódios fortuitos. Como se
fossemos crianças cuja tarefa única é a da contemplação. Tudo com um comovente
apuro estético fotográfico (Faraz Fesharaki), arquitectónico, também botânico.
Uma visita guiada pela serenidade de um tempo cristalizado.
Olhar,
ver, observar, comtemplar são verbos exigíveis quando entrarmos neste filme,
tal como naquela plateia de olhares
únicos com que inicia a abertura de «A Flauta Mágica» de Ingmar Berman (1974).
O mesmo encanto límpido e entusiasmado, quase infantil, com que assistimos às
peripécias oníricas de «Amarcord» de Federico Fellini (1973).
Filmes absolutos, sem tempo nem lugar.
jef,
abril 2022
«O
que vemos quando olhamos para o céu?» (Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt?) de
Alexandre Koberidze. Com Giorgi Bochorishvili, Ani Karseladze, Oliko Barbakadze,
Giorgi Ambroladze, Irina Chelidze, Vakhtang
Panchulidze. Argumento: Alexandre Koberidze. Produção: Mariam
Shatberashvil, Anna Dziapshipa, Ketevan Kipiani, Luise Hauschild. Fotografia: Faraz
Fesharaki. Música: Giorgi Koberidze. Guarda-Roupa: Nino Zautashvili. Alemanha,
Georgia, 2021, Cores, 150 min.
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