sexta-feira, 8 de abril de 2022

Sobre o filme «O que vemos quando olhamos para o céu?» de Alexandre Koberidze, 2021




























Um filme único. Uma espécie de redenção visual e espiritual do quotidiano e da humanidade. Imprescindível. Uma obra que, surpreendentemente e infelizmente, se torna urgente ver (ou observar) no dia de hoje.

Uma bola de futebol eleva-se de um recinto ao ar livre onde duas equipas de crianças jogam afincadamente. Certamente, mais tarde, irão ver jogar Lionel Messi pela Argentina, no Mundial. Essa bola cai depois nas águas turbulentas no rio Rioni que banha a cidade georgiana de Kutaisi e o espectador fica a olhá-la com demora enquanto a voz-off do realizador Alexandre Koberidze nos inquere sobre a necessidade para as gerações vindouras de, hoje, se estarem a realizar filmes enquanto o planeta se encaminha para a catástrofe ecológica. Talvez seja o único momento em que somos chamados a concentrarmo-nos no lado de fora do cinema.

Porque todo o filme é uma espécie de parábola-lenda-documentário sobre uma cidade velha e harmoniosa, sem tempo, onde se circula pacificamente pelas ruas, pelos cafés, também pelas margens de um rio que parece nunca as invadir apesar dos rápidos que o sustentam. Onde os cães também escolhem o melhor ecrã para assistir aos jogos do Mundial. Uma ponte branca, outra vermelha.

É a história de uma maldição que recai sobre dois jovens que acabam de se apaixonar à primeira vista quando os seus passos se cruzam e se desorientam no percurso que deviam tomar. Um livro cai-lhes entre os pés, por duas vezes. No dia seguinte, acordam com fisionomias diferentes e, por isso, ficam impossibilitados de se reconhecer. É a história de Lisa (Ani Karseladze / Oliko Barbakadze) e Giorgi (Giorgi Bochorishvili / Giorgi Ambroladze) que, apesar de tudo, não se afastam do local marcado para o encontro.

Esta lenda, em jeito de Xerazade, é apenas o pretexto para Alexandre Koberidze fazer com que fechemos os olhos durante três segundos. Voltamos a abri-los, depois, e entrarmos livres de tormentos numa dimensão redentora onde a benevolência nos faz espectadores de uma cidade lenta com os seus episódios fortuitos. Como se fossemos crianças cuja tarefa única é a da contemplação. Tudo com um comovente apuro estético fotográfico (Faraz Fesharaki), arquitectónico, também botânico. Uma visita guiada pela serenidade de um tempo cristalizado.

Olhar, ver, observar, comtemplar são verbos exigíveis quando entrarmos neste filme, tal  como naquela plateia de olhares únicos com que inicia a abertura de «A Flauta Mágica» de Ingmar Berman (1974). O mesmo encanto límpido e entusiasmado, quase infantil, com que assistimos às peripécias oníricas de «Amarcord» de Federico Fellini (1973).

Filmes absolutos, sem tempo nem lugar.


jef, abril 2022

«O que vemos quando olhamos para o céu?» (Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt?) de Alexandre Koberidze. Com Giorgi Bochorishvili, Ani Karseladze, Oliko Barbakadze, Giorgi Ambroladze, Irina Chelidze, Vakhtang Panchulidze. Argumento: Alexandre Koberidze. Produção: Mariam Shatberashvil, Anna Dziapshipa, Ketevan Kipiani, Luise Hauschild. Fotografia: Faraz Fesharaki. Música: Giorgi Koberidze. Guarda-Roupa: Nino Zautashvili. Alemanha, Georgia, 2021, Cores, 150 min.

 

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