Há
verdades tão reais e cruéis que se tornam difíceis de explicar, uma vez que o
bom senso, à partida, as parece rejeitar. Por outro lado, a arte sempre teve
essa dimensão maior, interpretativa, cognitiva, emotiva, por isso catártica,
que a torna, por vezes, a única arma a ser utilizada para que possamos
compreender a tragédia, e para que dela fiquemos emocionalmente credores.
Talvez pathos, talvez simbolismo, talvez estilização.
É
o caso do documentário «Flee - A Fuga» onde o realizador Jonas Poher Rasmussen,
através do cinema de animação, nos conta a história do seu amigo afegão Amin
que fugiu ainda adolescente de Cabul e, por duas vezes, de Moscovo, para se
estabelecer na Dinamarca, onde se tornou, anos depois, um conhecido
académico. O desenho animado colocará Amin numa espécie de cadeira de
psicanalista ou de plateau onde Jonas Poher Rasmussen o acompanha, dialogando,
incentivando-o a falar, a narrar, recordando as memórias mais felizes de
criança, os traumas mais esquecidos, enterrados no brutal desenraizamento
geográfico, na cicatriz aberta pelo afastamento familiar, na memória sofrida da
dificílima fuga clandestina. Uma memória sempre toldada, igualmente, pela noção
frontal de que a sua homossexualidade é proscrita no seu próprio país, que nem
vocábulo possui para a nomear.
Entrecortado
com imagens documentais que circunscrevem a acção do filme, o tom reflexivo e
dorido com que a história nos é contada, pontuado por algumas suaves
gargalhadas, assiste ao correr narrativo, sóbrio, sincero, depuradamente
estético (talvez muito nórdico), sem nunca cair na fácil e lacrimejante
lamechice.
O
drama planetário dos refugiados (com esta incompreensível aceleração no século
XXI) faz aproximar a fuga de Amin mais da dos refugiados sírios e dos do Norte
de África do que da actual migração em massa do povo ucraniano.
«Flee
- A Fuga» é um importante filme-de-animação-documenário para os tempos
presentes, como o terão sido aqueles, sobejamente mencionados: «A Valsa com
Bashir» de Ari Folman (2008) ou «Persépolis» de Vincent Paronnaud e Marjane
Satrapi (2007).
Acima
de todos, para mim, este filme recordou-me um dos meus filmes de sempre: «A
Imagem que Falta» de Rithy Panh (2013).
A
urgência da arte cinematográfica como denúncia da barbárie mas também na
centralização política dos fenómenos sociais mais trágicos.
jef,
abril 2022
«Flee
- A Fuga» (Flee) de Jonas Poher Rasmussen. Filme de animação com as vozes de Daniel
Karimyar, Fardin Mijdzadeh, Milad Eskandari, Belal Faiz, Elaha Faiz, Zahra
Mehrwarz, Sadia Faiz, Rashid Aitouganov, Georg Jagunov, Navid Nazir, Hafiz
Højmark. Argumento: Jonas Poher Rasmussen e Amin Nawabi. Produção:
Riz Ahmed, Nikolaj Coster-Waldau, Charlotte de La Gournerie. Direcção
artística: Jess Nicholls, Martin Hultman. Música: Uno Helmersson. Dinamarca, Suécia,
Noruega, França 2021, Cores, 83 min.
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