Tal como em «O que vemos
quando olhamos para o céu?» de Alexandre Koberidze, o que Yuri Ancarani nos propõe em «Atlântida» é apenas “olhar” e
entendermos como o tempo alongado da observação é um fundamental princípio cognitivo
de introspecção interpretação da realidade.
A história do silencioso Daniele
(Daniele Barison), que vive no e para o seu “barchino”, e rouba a hélice a
outro barco para potenciar a velocidade ilegal com que concorre entre pares na
Laguna de Veneza, é uma história trágica mas muito simples e próxima da
realidade. Quase nada é dito no dialecto veneziano dos adolescentes pobres da
cidade dos turistas e de Visconti.
Uma das cenas iniciais e que
nos oferece esse lado de observação interpretativa é a do muro de uma das ilhas longínquas da Laguna, onde se lê o aviso de que aquele é um lugar de
silêncio e oração. Lá dentro, sob o calor do hábito, um monge enclausurado trata
da horta. Cá fora, os jovens aceitam o sol no corpo, estendidos sobre o convés
dos barcos que emitem música trance a partir de potentes sound systems.
Aguardam a noite veneziana para se digladiarem em competição e orgulho.
Outra das cenas que muda
o sentido da narrativa é a das mãos da namorada de Daniele, Maila (Maila Dabalà),
a serem arranjadas pela manicura com unhas de gel, enquanto esta lhe pergunta desde quando é que rói as unhas ou por que razão deixou de estudar. Minutos
depois, Daniele ao volante do seu barco velocíssimo arranca do tablier o nome
decalcado de Maila. Outro amor virá.
No final, em estilo requiem
ou ópera rock por Daniele e pela noite veneziana, vamos contemplando o reflexo
aquático de dezenas de pontes de Veneza provocando, pela rotação da câmara, uma
cadeia infinita de objectos que, por simetria e abstracção, nos sugerem a beleza
da anatomia feminina.
Pouco nos é dito por
palavras. Tudo nos é dito pelas mais belas imagens de uma Veneza que, deste
modo, se transforma numa conhecida desconhecida cidade. Tudo nos é dito pelo
silêncio de Daniele ou pelo som e pela música cuja batida infinita nos
demonstra a vital espiritualidade da contemplação.
jef, abril 2022
«Atlântida» (Atlantide) de
Yuri Ancarani. Com Daniele Barison, Bianka Berényi, Maila Dabalà. Argumento: Yuri
Ancarani. Produção: Marco Alessi, Rafael Minasbekyan e Dmitry
Saltykovsky. Fotografia: Yuri Ancarani e Mauro Chiarello. Música: Francesco
Fantini e Lorenzo Senni. Som: Piergiorgio De Luca. Itália / França, 2021, Cores,
100 min.
Sem comentários:
Enviar um comentário