sexta-feira, 22 de abril de 2022

Sobre o filme «Atlântida» de Yuri Ancarani, 2021












Tal como em «O que vemos quando olhamos para o céu?» de Alexandre Koberidze, o que Yuri Ancarani nos propõe em «Atlântida» é apenas “olhar” e entendermos como o tempo alongado da observação é um fundamental princípio cognitivo de introspecção interpretação da realidade.

A história do silencioso Daniele (Daniele Barison), que vive no e para o seu “barchino”, e rouba a hélice a outro barco para potenciar a velocidade ilegal com que concorre entre pares na Laguna de Veneza, é uma história trágica mas muito simples e próxima da realidade. Quase nada é dito no dialecto veneziano dos adolescentes pobres da cidade dos turistas e de Visconti.

Uma das cenas iniciais e que nos oferece esse lado de observação interpretativa é a do muro de uma das ilhas longínquas da Laguna, onde se lê o aviso de que aquele é um lugar de silêncio e oração. Lá dentro, sob o calor do hábito, um monge enclausurado trata da horta. Cá fora, os jovens aceitam o sol no corpo, estendidos sobre o convés dos barcos que emitem música trance a partir de potentes sound systems. Aguardam a noite veneziana para se digladiarem em competição e orgulho.

Outra das cenas que muda o sentido da narrativa é a das mãos da namorada de Daniele, Maila (Maila Dabalà), a serem arranjadas pela manicura com unhas de gel, enquanto esta lhe pergunta desde quando é que rói as unhas ou por que razão deixou de estudar. Minutos depois, Daniele ao volante do seu barco velocíssimo arranca do tablier o nome decalcado de Maila. Outro amor virá.

No final, em estilo requiem ou ópera rock por Daniele e pela noite veneziana, vamos contemplando o reflexo aquático de dezenas de pontes de Veneza provocando, pela rotação da câmara, uma cadeia infinita de objectos que, por simetria e abstracção, nos sugerem a beleza da anatomia feminina.

Pouco nos é dito por palavras. Tudo nos é dito pelas mais belas imagens de uma Veneza que, deste modo, se transforma numa conhecida desconhecida cidade. Tudo nos é dito pelo silêncio de Daniele ou pelo som e pela música cuja batida infinita nos demonstra a vital espiritualidade da contemplação.


jef, abril 2022

«Atlântida» (Atlantide) de Yuri Ancarani. Com Daniele Barison, Bianka Berényi, Maila Dabalà. Argumento: Yuri Ancarani. Produção: Marco Alessi, Rafael Minasbekyan e Dmitry Saltykovsky. Fotografia: Yuri Ancarani e Mauro Chiarello. Música: Francesco Fantini e Lorenzo Senni. Som: Piergiorgio De Luca. Itália / França, 2021, Cores, 100 min.

 

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