O livro começa muito antes de Emma Bovary. Termina para lá de
Emma Bovary. Deixa-nos a ideia de que é tudo além dela. É sobre tudo o que
a rodeia, o que a move, o que a circunstancia. Ela está «ausente». Um certo espelho
de Gustave Flaubert, que este desejaria quebrado.
O livro é muito mais sobre a crente ingenuidade de um médico
de formação pouco convicta, Charles Bovary, do que essa vocação, quase volúpia,
que o tédio transporta até ao centro das vilas de província. Tostes, Yonville
ou Rouen. Paris talvez seja também, mas é inatingível.
Uma comédia brutal, um trágico mundo de brincar, onde o
sarcasmo desabrido de Gustave Flaubert espicaça tudo o que o irritaria na «sua»
sociedade francesa. Humor no fio da navalha a cobrir de pó tudo e todos os que
vão saindo pelo crivo da displicência aguda ou do descrédito crónico da pena do
enorme escritor.
«Como se a plenitude da alma não extravasasse às vezes as
metáforas mais vazias, pois ninguém pode, jamais, dar a medida exacta das suas
necessidades, das suas concepções e das suas dores, e a palavra humana é como
um caldeirão rachado onde tocamos melodias de fazer dançar os ursos, quando
desejaríamos enternecer as estrelas.»
Ou seja, nem na palavra podemos confiar.
Mas entre a mentira assumida e tida por passatempo divertido e
a confiança inquebrantável, apaixonada e néscia, de quem nada deve suspeitar,
tudo pode acontecer. O amor e a sedução parecem interessar muito menos do que
os discursos grandiloquentes e vácuos durante a festa dos comícios agrícolas,
que os entrecortam. O adultério e o agiotagem… A morte pouco representam
quando velada pela discussão acerbada entre o padre Bournisien e o filósofo
farmacêutico Homais... E o fiacre segue desenfreado pelas ruas de Rouen, pelos seus arredores, as cortinas corridas, os cavalos exaustos, puxando a escrita que não
teme a pressa e uma narrativa acre, cheia de pormenores simples, fulgurantes. Simbólicos.
Assim, são as palavras neste livro: corridas e sintomáticas!
Esse episódio (e outros) foram censurados quando da primeira publicação
na ‘Revue de Paris’, em 1856. Mesmo assim, um ano depois, o autor foi a
tribunal. Os bons costumes morais e a burguesia religiosa ofendiam-se. [A
Guerra da Crimeia, o Tratado de Paris, a Guerra Franco-Alemão eram vistos muito
ao longe.]
Pena o tradutor não ter dado o destaque devido a um certo pormenor
da última frase do livro. A condecoração finalmente conseguida pelo aguerrido farmacêutico
Homais é a da Légion d'Honneur. A
mesma recebida por Gustave Flaubert, em 1866. Uma espécie de agradecimento
conclusivo e sarcástico por parte de uma
sociedade que ele tanto dissecava com o bisturi do seu humor cáustico.
p.s. Entretanto, regressou há memória mais recente o filme «Madame De…» de Max Ophuls, 1953.
p.s. Entretanto, regressou há memória mais recente o filme «Madame De…» de Max Ophuls, 1953.
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