quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Sobre o livro «Madame Bovary – Hábitos da Província» de Gustave Flaubert (1857). Relógio D’Água, 1991. Tradução: João Pedro de Andrade.















O livro começa muito antes de Emma Bovary. Termina para lá de Emma Bovary. Deixa-nos a ideia de que é tudo além dela. É sobre tudo o que a rodeia, o que a move, o que a circunstancia. Ela está «ausente». Um certo espelho de Gustave Flaubert, que este desejaria quebrado.

O livro é muito mais sobre a crente ingenuidade de um médico de formação pouco convicta, Charles Bovary, do que essa vocação, quase volúpia, que o tédio transporta até ao centro das vilas de província. Tostes, Yonville ou Rouen. Paris talvez seja também, mas é inatingível.

Uma comédia brutal, um trágico mundo de brincar, onde o sarcasmo desabrido de Gustave Flaubert espicaça tudo o que o irritaria na «sua» sociedade francesa. Humor no fio da navalha a cobrir de pó tudo e todos os que vão saindo pelo crivo da displicência aguda ou do descrédito crónico da pena do enorme escritor.

«Como se a plenitude da alma não extravasasse às vezes as metáforas mais vazias, pois ninguém pode, jamais, dar a medida exacta das suas necessidades, das suas concepções e das suas dores, e a palavra humana é como um caldeirão rachado onde tocamos melodias de fazer dançar os ursos, quando desejaríamos enternecer as estrelas.»

Ou seja, nem na palavra podemos confiar.

Mas entre a mentira assumida e tida por passatempo divertido e a confiança inquebrantável, apaixonada e néscia, de quem nada deve suspeitar, tudo pode acontecer. O amor e a sedução parecem interessar muito menos do que os discursos grandiloquentes e vácuos durante a festa dos comícios agrícolas, que os entrecortam. O adultério e o agiotagem… A morte pouco representam quando velada pela discussão acerbada entre o padre Bournisien e o filósofo farmacêutico Homais... E o fiacre segue desenfreado pelas ruas de Rouen, pelos seus arredores, as cortinas corridas, os cavalos exaustos, puxando a escrita que não teme a pressa e uma narrativa acre, cheia de pormenores simples, fulgurantes. Simbólicos. Assim, são as palavras neste livro: corridas e sintomáticas!

Esse episódio (e outros) foram censurados quando da primeira publicação na ‘Revue de Paris’, em 1856. Mesmo assim, um ano depois, o autor foi a tribunal. Os bons costumes morais e a burguesia religiosa ofendiam-se. [A Guerra da Crimeia, o Tratado de Paris, a Guerra Franco-Alemão eram vistos muito ao longe.]

Pena o tradutor não ter dado o destaque devido a um certo pormenor da última frase do livro. A condecoração finalmente conseguida pelo aguerrido farmacêutico Homais é a da Légion d'Honneur. A mesma recebida por Gustave Flaubert, em 1866. Uma espécie de agradecimento conclusivo e  sarcástico por parte de uma sociedade que ele tanto dissecava com o bisturi do seu humor cáustico.

p.s. Entretanto, regressou há memória mais recente o filme «Madame De…» de Max Ophuls, 1953.

jef, novembro 2018

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