Quando procuro no livro «100 dias / 100 filmes» sobre os
melhores filmes europeus, editado pela Cinemateca Portuguesa por ocasião de
“Lisboa Capital da Cultura" 1994, reparo que «A Regra do Jogo» surge em
segundo lugar apenas superado por «Nosferatu» de Murnau (1922), recebendo 56
dos 75 votos dos críticos convocados.
Mas se o filme é comparado nessa cinéfila veneração, por
vezes tão absoluta quanto absurda, a «Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés» (Orson
Welles, 1941) ou «Vertigo – A Mulher que
Viveu Duas Vezes» (Hitchcock, 1958), também é verdade que não terá havido
no mundo filme tão pateado pelo público, tão odiado pelos jornais e, ao mesmo
tempo, tão amado pela arte cinematográfica.
Estreado por altura da invasão da Polónia pelas tropas de
Hitler e do início da Segunda Guerra Mundial, o filme foi retirado de exibição
pública poucos dias depois, considerado «desmoralizador». O realizador, estupefacto,
tentou obviar a turba, cortando cenas, retirando-lhe minutos únicos . Em 1940, quando da ocupação de Paris
pelas tropas alemãs, os nazis destruíram a película original. Em Portugal, o
filme esteve proibido, tendo sido visto publicamente apenas em 1972.
Contudo, os críticos e cinéfilos franceses André Bazin e
Georges Sadoul, desde a sua realização, sempre os defenderam com unhas e dente, realizador e filme, lutando pela conservação e exibição deste. E venceram, décadas depois! «A
Regra do Jogo» é uma Obra-Prima (absoluta e talvez também um pouco absurda!).
E qual a razão de tanto ódio face a um divertimento que Jean Renoir quis que parecesse uma opera buffa, uma
comédia de costumes com loucuras de amor, trocas entre criados e patrões, em
jeito de Beaumarchais e Marivaux, ao som de Mozart de «As Bodas de Fígaro» (e
Monsigny e Saint-Saëns e Johann Strauss) e com um enredo baseado em «Les
Caprices de Marianne» de Musset?
O que se passará então nesta comédia que, se perguntarem aos espectadores, cada um certamente a contará de modo muito diferente? Numa
particularidade todos concordarão, esta história tem no centro a amizade
amorosa entre Octave (Jean Renoir) – que
com todos convive – e Christine, a Marquesa de La Chesnaye (Nora Grégor) –
que todos junta durante um fim-de-semana no seu castelo La Colinière, na região
de pântanos e coelhos de La Sologne. Sim, exactamente, no centro está a bonomia
de Octave que se mascara de Urso no baile de máscaras e uma certa resignação atormentada,
sempre exibida na face e no sotaque austríaco de Christine. No restante, cada
um que descubra as sucessivas camadas de histórias, influências,
estéticas e intenções.
Porém, sublinhe-se, a genial intuição de Jean Renoir apenas terá
desejado ocupar o castelo com um faustoso baile de máscaras e um teatro musical mecânico, ou os bosques de
La Sologne com uma caçada aos coelhos e faisões verdadeiramente atroz. Jean
Renoir jamais quis realizar um libelo de luta de classes ou um tratado sobre o
amor livre, ou uma declaração de guerra, de paz e de morte. Apenas tentou explicar aos
espectadores como um filme é tão diferente de uma peça de teatro. Tal como a dança,
a música, a circulação das personagens entre o exterior e o interior do
castelo, entre as várias salas, entre a cozinha e os salões, conduzindo a tão fabuloso conto de muitas fadas e faunos que se amam e se deixam amar! (Lembro-me
do cómico delírio em Ernst Lubitsch, Howard Hawks, Billy Wilder e,claro, Chaplin ou os Irmãos Marx!)
Aqui Jean Renoir veste a própria pele. Liberta-se e faz a
sua comédia como se corresse pelos bastidores do seu génio enquanto
implora que o ajudem a tirar a máscara com que se confunde e nos diverte. Infelizmente
todos se mostram ocupados.
Afinal, quem o ajudará a despir a pele do urso?
jef, outubro 2018
«A Regra do Jogo» (La Régle du Jeu) de Jean Renoir. Com
Marcel Dalio, Nora Grégor, Jean Renoir, Paulette Dubost, Gaston Modot, Julien
Carette, Roland Toutain, Mila Parély, Anne Mayen, Pierre Nay, Pierre Magnier,
Odette Talazac, Claire Gérard, Roger Forster, Richard Francoeur, Henri
Cartier-Bresson. França, 1939, P/B, 112 min.
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