sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Sobre o filme «A Regra do Jogo» de Jean Renoir, 1939.




















Quando procuro no livro «100 dias / 100 filmes» sobre os melhores filmes europeus, editado pela Cinemateca Portuguesa por ocasião de “Lisboa Capital da Cultura" 1994, reparo que «A Regra do Jogo» surge em segundo lugar apenas superado por «Nosferatu» de Murnau (1922), recebendo 56 dos 75 votos dos críticos convocados.

Mas se o filme é comparado nessa cinéfila veneração, por vezes tão absoluta quanto absurda, a «Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés» (Orson Welles, 1941) ou «Vertigo –  A Mulher que Viveu Duas Vezes» (Hitchcock, 1958), também é verdade que não terá havido no mundo filme tão pateado pelo público, tão odiado pelos jornais e, ao mesmo tempo, tão amado pela arte cinematográfica.

Estreado por altura da invasão da Polónia pelas tropas de Hitler e do início da Segunda Guerra Mundial, o filme foi retirado de exibição pública poucos dias depois, considerado «desmoralizador». O realizador, estupefacto, tentou obviar a turba, cortando cenas, retirando-lhe minutos únicos. Em 1940, quando da ocupação de Paris pelas tropas alemãs, os nazis destruíram a película original. Em Portugal, o filme esteve proibido, tendo sido visto publicamente apenas em 1972.

Contudo, os críticos e cinéfilos franceses André Bazin e Georges Sadoul, desde a sua realização, sempre os defenderam com unhas e dente, realizador e filme, lutando pela conservação e exibição deste. E venceram, décadas depois! «A Regra do Jogo» é uma Obra-Prima (absoluta e talvez também um pouco absurda!).

E qual a razão de tanto ódio face a um divertimento que Jean Renoir quis que parecesse uma opera buffa, uma comédia de costumes com loucuras de amor, trocas entre criados e patrões, em jeito de Beaumarchais e Marivaux, ao som de Mozart de «As Bodas de Fígaro» (e Monsigny e Saint-Saëns e Johann Strauss) e com um enredo baseado em «Les Caprices de Marianne» de Musset?

O que se passará então nesta comédia que, se perguntarem aos espectadores, cada um certamente a contará de modo muito diferente? Numa particularidade todos concordarão, esta história tem no centro a amizade amorosa entre Octave (Jean Renoir) –  que com todos convive – e Christine, a Marquesa de La Chesnaye (Nora Grégor) – que todos junta durante um fim-de-semana no seu castelo La Colinière, na região de pântanos e coelhos de La Sologne. Sim, exactamente, no centro está a bonomia de Octave que se mascara de Urso no baile de máscaras e uma certa resignação atormentada, sempre exibida na face e no sotaque austríaco de Christine. No restante, cada um que descubra as sucessivas camadas de histórias, influências, estéticas e intenções.

Porém, sublinhe-se, a genial intuição de Jean Renoir apenas terá desejado ocupar o castelo com um faustoso baile de máscaras e um teatro musical mecânico, ou os bosques de La Sologne com uma caçada aos coelhos e faisões verdadeiramente atroz. Jean Renoir jamais quis realizar um libelo de luta de classes ou um tratado sobre o amor livre, ou uma declaração de guerra, de paz e de morte. Apenas tentou explicar aos espectadores como um filme é tão diferente de uma peça de teatro. Tal como a dança, a música, a circulação das personagens entre o exterior e o interior do castelo, entre as várias salas, entre a cozinha e os salões, conduzindo a tão fabuloso conto de muitas fadas e faunos que se amam e se deixam amar! (Lembro-me do cómico delírio em Ernst Lubitsch, Howard Hawks, Billy Wilder e,claro, Chaplin ou os Irmãos Marx!)

Aqui Jean Renoir veste a própria pele. Liberta-se e faz a sua comédia como se corresse pelos bastidores do seu génio enquanto implora que o ajudem a tirar a máscara com que se confunde e nos diverte. Infelizmente todos se mostram ocupados.

Afinal, quem o ajudará a despir a pele do urso?

jef, outubro 2018
                                                            
«A Regra do Jogo» (La Régle du Jeu) de Jean Renoir. Com Marcel Dalio, Nora Grégor, Jean Renoir, Paulette Dubost, Gaston Modot, Julien Carette, Roland Toutain, Mila Parély, Anne Mayen, Pierre Nay, Pierre Magnier, Odette Talazac, Claire Gérard, Roger Forster, Richard Francoeur, Henri Cartier-Bresson. França, 1939, P/B, 112 min.

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