Se existe livro ilustrado que me surpreende (e compreende), sempre,
é este.
As fotografias expostas em grande ou médio tamanho, a preto e
branco num livro de 23,5 x 16,5 cm, mostram um Constantino Cara-Linda, o
“Cuco”, magro e andarilho, olhar duro, entre o determinado e o constrangido, talvez
mais voluntarioso que desconfiado, entre os matos e os muros do Freixial, lá
para Bucelas; entre os pintassilgos, contando os ninhos, a Ti Elvira, sua avó, e
o bebedouro onde bebem a boa da Mimosa,
a caprichosa da Carôcha, também a
teimosia dos burros. Acima de tudo os canaviais, as margens, as águas do
Trancão que desaguam no Tejo, em lembrança de barcos e viagens grandes…
Sobre as imagens que obrigam a percepção do leitor ao
‘realismo’ pictórico (as fotografias são de António Neto e do próprio autor),
Alves Redol conta histórias banais, ‘pouco-histórias’, da vida do Constantino e
da sua cadela Rasteira, dividindo-as
em duas secções – «Um Cuco Rambóia» e «Um Cuco Laborioso» –, alterando a
verosimilhança da realidade com a ternura emocional com que observa a diversão
e o sofrimento ao correr do tempo na aldeia saloia. O autor deseja afastar-se
do ‘neo-realismo’ que as fotografias demonstram e ilustra-as com o enlevo
romântico com que parece recontar também as viagens da própria família quando
emigrou para a lezíria, em Vila Franca de Xira.
Alves Redol comove-se, libertando-se de peias e catálogos
académicos, e entrega-se ao veio livre das palavras. Em «Um bacalhau depois de
uma raposa», dá livre curso na descrição da garraiada, coisa que o escritor
tratava por tu, descrevendo toureiros borrachões e vacas cansadas de tédio. Em
«Guardador de vacas», coloca os animais de Constantino a pastar no arco-íris, quando
a avó enuncia: “os animais precisam de verde!”. No final, entrega-se à liberdade
fantástica de um sonho onde Constantino navega com o seu compincha Manel até ao
alto mar para lá do mar da palha do Tejo.
Alves Redol descreve as imagens de Constantino com a
tranquilidade, talvez nostalgia, de quem tem tem a escrita em dia e a consciência
de que a infância contém quase sempre a génese de um sonho talvez perdido.
Duas Notas do Interior Duas
(1)
Este livro foi-me oferecido num Natal pelo meu
pai quando eu era miúdo e lembro-me de ter ficado muito orgulhoso por já ter
direito a livros “a sério”.
(2)
Um livro sobre a aldeia do Freixial onde os
meus pais nos levavam a almoçar, no domingo, com os meus avós, num restaurante com
uma varanda que dava para o monte Picoto. Tinha um cruzeiro e, lá no céu, estoiravam
ao retardador os morteiros com os seus penachos de fumo.
jef, março 2020
Belo artigo!
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