Não lhe chamem surrealista…
São duas dezenas de caixas, moldura com requinte,
profundidade e relevo suficientes para a pintura se chamar colagem e esta se
transformar em escultura. A primeira imagem que me veio à cabeça é a de estar na
frente de objectos regressados de um museu de caixas de música com bailarina em
pontas lá no topo ou de um teatro mecânico onde se coloca a moeda para o macaquinho
bater os pratos. Ou daqueles livros ilustrados para miúdos onde se puxa uma patilha lateral e o lobo mau vai de comer os três porquinhos de uma vez só. Caixa de furos dos chocolates regina a sair sempre a bola
prateada, a grande tablete.
Porém, aqui não podemos tocar o objecto. É ele que nos toca.
No início, um homem nostálgico, a pensar, sentadinho no cimo de uma ravina
obscura, feita de folhas e outras nuvens coladas, diz: «foda-se!». É esse o
movimento inicial. O movimento mais profundo e sintomático, o da palavra dita
ou redigida. Coloquial ou introspectiva, colada sobre o recorte em cartolina da «casa da beira alta de raúl lino» e com a política a subnadar… Temos de
sorrir. A conversa de leitaria ou de salão de cabeleireiro ou de clube chique da
marinha, posta como pensamento escrito em balão de banda desenhada, pode ser incompreensivelmente
irónica, talvez romântica, mas nunca é modernista ou surrealista! Porque, aqui, o absurdo absorve clinicamente o
desespero do mundo real e reinventa-o, em termos estéticos, para nós o suportarmos.
Há poucos dias, Henrique Ruivo partiu com Madalena Ruivo. Deixou-nos
esta exposição para podermos sorrir (sempre sem escárnio e com a ternura pela
mão) sobre um futuro ‘impossível’ e entendermos que a conversa e a memória,
como as palavras e as imagens ali sobrepostas, são imprescindíveis para nos
trazer luz sobre o nosso mundo ‘hiper-realista’. Henrique Ruivo fá-lo muito
mais facilmente do que uma biblioteca cheia de dicionários de academia,
tratados de história da arte ou manuais de conversação.
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