domingo, 8 de março de 2020

Sobre a exposição «Manual de Conversação» de Henrique Ruivo, Casa da Cultura, Setúbal, Março 2020
















Não lhe chamem surrealista…

São duas dezenas de caixas, moldura com requinte, profundidade e relevo suficientes para a pintura se chamar colagem e esta se transformar em escultura. A primeira imagem que me veio à cabeça é a de estar na frente de objectos regressados de um museu de caixas de música com bailarina em pontas lá no topo ou de um teatro mecânico onde se coloca a moeda para o macaquinho bater os pratos. Ou daqueles livros ilustrados para miúdos onde se puxa uma patilha lateral e o lobo mau vai de comer os três porquinhos de uma vez só. Caixa de furos dos chocolates regina a sair sempre a bola prateada, a grande tablete.

Porém, aqui não podemos tocar o objecto. É ele que nos toca. No início, um homem nostálgico, a pensar, sentadinho no cimo de uma ravina obscura, feita de folhas e outras nuvens coladas, diz: «foda-se!». É esse o movimento inicial. O movimento mais profundo e sintomático, o da palavra dita ou redigida. Coloquial ou introspectiva, colada sobre o recorte em cartolina da «casa da beira alta de raúl lino» e com a política a subnadar… Temos de sorrir. A conversa de leitaria ou de salão de cabeleireiro ou de clube chique da marinha, posta como pensamento escrito em balão de banda desenhada, pode ser incompreensivelmente irónica, talvez romântica, mas nunca é modernista ou surrealista! Porque, aqui, o absurdo absorve clinicamente o desespero do mundo real e reinventa-o, em termos estéticos, para nós o suportarmos.

Há poucos dias, Henrique Ruivo partiu com Madalena Ruivo. Deixou-nos esta exposição para podermos sorrir (sempre sem escárnio e com a ternura pela mão) sobre um futuro ‘impossível’ e entendermos que a conversa e a memória, como as palavras e as imagens ali sobrepostas, são imprescindíveis para nos trazer luz sobre o nosso mundo ‘hiper-realista’. Henrique Ruivo fá-lo muito mais facilmente do que uma biblioteca cheia de dicionários de academia, tratados de história da arte ou manuais de conversação.

jef, março 2020

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