domingo, 29 de março de 2020

Sobre o livro «As Batalhas do Caia» de Mário Cláudio. D. Quixote, 1995 / 2019.















Existe sobre «As Batalhas do Caia» um ficcionista reverente mas insubordinado que, venerando a obra de José Maria Eça de Queirós, parece invejoso do prazer que teria caso houvesse a possibilidade de ler o tal romance que o escritor-cônsul jamais concretizou. Da intenção existem notas e cartas, uma delas a Ramalho Ortigão. Um conto inacabado, «A Catástrofe».

O País em ruína, com uma monarquia a finar-se, democrática mas saloia e endividada, é invadido pelo exército da eterna hostil Espanha. Daria brado o romance, abalariam mais tais páginas que a investida dos soldados castelhanos. O ficcionista toma o punho daquele escritor primeiro e continua-lhe a arte, avança na narrativa, no furor militar do inimigo, na ingénua impreparação da paupérrima soldadesca portuguesa.

Também ali uma missiva é ditada, na frente de combate, pelo cabo Luís de Sousa, ao punho do oficial Policarpo Alfredo Gomes dos Santos. É este que nos conta as peripécias da ruína portuguesa.

Existe ainda um narrador complacente ou uma voz sobrevoadora que ousa dizer-lhe ao ouvido, de vez em quando: «E é nessas alturas que entendo urgente intervir». E mais ousa o super-narrador depois esconder-se, sub-repticiamente fingido, tomado por um certo transeunte, ou paquete, ou factor, ou barbeiro, que com José Maria se cruza. Mas sempre o vai seguindo, de Inglaterra a França, nas deambulações diplomáticas, mala às costas, perpassando a saudade reprimida:
«Mas não é que nos aparece a uma outra luz, quando vista daqui, a ditosa Pátria?».

E nem se detém o nosso escritor, o segundo, o invejoso, em criar histórias dentro da história narrada pela mão do outro que vai aos poucos envelhecendo, e adormecendo, e adoecendo, ao lado de Emília, esposa vigilante, e dos quatro descendentes expectantes. O nosso Policarpo passa perto do Arsenal e não vê a sentinela espanhola mas um soldado, pobre e português, vindo ao mundo «numa aldeia de rocha escura». E em quatro páginas, a história do miserável é contada.

Se a poética semântica de uma certa solidão logo de início se torna urgente:
«Ainda não caíram os primeiros flocos de neve, mas o chumbo das nuvens baixas, se de imediato os não promete, concede à imaginação o legítimo direito de lhes adivinhar a chegada.»

No final deste livro de contos, poemas e entardeceres, vai o segundo autor admitir ter repetido a outorgada solidão do primeiro, redimindo-se compungido, declarando:
«E aqui permanece imóvel diante do romance que não se formou, ex-líbris fatal, pequeno corvo atento sobre a caveira do Mestre.»

jef, março 2020

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