Existe sobre «As Batalhas do Caia» um ficcionista reverente
mas insubordinado que, venerando a obra de José Maria Eça de Queirós, parece
invejoso do prazer que teria caso houvesse a possibilidade de ler o tal romance
que o escritor-cônsul jamais concretizou. Da intenção existem notas e cartas,
uma delas a Ramalho Ortigão. Um conto inacabado, «A Catástrofe».
O País em ruína, com uma monarquia a finar-se, democrática
mas saloia e endividada, é invadido pelo exército da eterna hostil Espanha.
Daria brado o romance, abalariam mais tais páginas que a investida dos soldados
castelhanos. O ficcionista toma o punho daquele escritor primeiro e continua-lhe
a arte, avança na narrativa, no furor militar do inimigo, na ingénua impreparação
da paupérrima soldadesca portuguesa.
Também ali uma missiva é ditada, na frente de combate, pelo
cabo Luís de Sousa, ao punho do oficial Policarpo Alfredo Gomes dos Santos. É
este que nos conta as peripécias da ruína portuguesa.
Existe ainda um narrador complacente ou uma voz sobrevoadora
que ousa dizer-lhe ao ouvido, de vez em quando: «E é nessas alturas que entendo
urgente intervir». E mais ousa o super-narrador depois esconder-se,
sub-repticiamente fingido, tomado por um certo transeunte, ou paquete, ou
factor, ou barbeiro, que com José Maria se cruza. Mas sempre o vai seguindo, de
Inglaterra a França, nas deambulações diplomáticas, mala às costas, perpassando
a saudade reprimida:
«Mas não é que nos aparece a uma outra luz, quando vista
daqui, a ditosa Pátria?».
E nem se detém o nosso escritor, o segundo, o invejoso, em
criar histórias dentro da história narrada pela mão do outro que vai aos poucos
envelhecendo, e adormecendo, e adoecendo, ao lado de Emília, esposa vigilante, e dos quatro
descendentes expectantes. O nosso Policarpo passa perto do Arsenal e não vê a
sentinela espanhola mas um soldado, pobre e português, vindo ao mundo «numa
aldeia de rocha escura». E em quatro páginas, a história do miserável é
contada.
Se a poética semântica de uma certa solidão logo de início se
torna urgente:
«Ainda não caíram os primeiros flocos de neve, mas o chumbo
das nuvens baixas, se de imediato os não promete, concede à imaginação o
legítimo direito de lhes adivinhar a chegada.»
No final deste livro de contos, poemas e entardeceres, vai o
segundo autor admitir ter repetido a outorgada solidão do primeiro,
redimindo-se compungido, declarando:
«E aqui permanece imóvel diante do romance que não se formou,
ex-líbris fatal, pequeno corvo atento sobre a caveira do Mestre.»
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