quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Sobre o filme «Foi Só Um Acidente» de Jafar Panahi, 2025



 






















Os carros de Jafar Panahi. Os carros onde o realizador esconde sistematicamente a sua cinematografia. Esconde-a por que assim mantém a sua política, a sua ternura, fora do alcance das garras constrangedoras da censura. Ali dentro mantém a sua intimidade incólume, o seu bom humor, mesmo o seu carinho pela história, o amor pelas suas personagens. Ali elas estão seguras, e junto do seu coração. Até «Foi Só Um Acidente».

Em «Foi Só Um Acidente», Jafar Panahi abriu as portas da carrinha de Vahid (Vahid Mobasseri) à violência da tortura, à agressividade de um regime ignóbil que criou algozes ferozes e vítimas enclausuradas na memória dos seus próprios traumas de guerra. A carrinha de Vahid encerra toda a sociedade claustrofóbica, a claustrofobia que opõe a justiça à vingança. A carrinha cheira mal, ao vómito da raiva, ao suor do condenado, às fezes imundas de uma dúvida permanente. O que fazer com a memória do som de uns passos que coxeiam, de um cárcere infecto, da tortura, do medo da morte iminente, a memória de um crime colectivo e de vidas e famílias destroçadas?

Mesmo assim, a alma boa de Jafar Panahi faz-nos sorrir pelo meio de um filme violentíssimo, a que ele, sempre benevolente, se obrigou a realizar. Por mais de uma vez, fora daquele sarcófago, as pessoas circulam em volta e olham para aquela trupe ambulante com os olhos de espectadores que afinal assistem a uma comédia. E o realizador sabe como o tempo da tragédia e o tempo da comédia são distintos, mas inevitáveis por justapostos. A referência à arvore seca dos enforcados frustrados de «À Espera de Godot» é bem prova de tal consciência.

Sim, um filme violentíssimo mas onde a esperança na humanidade e no seu bom juízo, na sua regeneração é permanente e, afinal, conclusiva.

Um filme a que o Festival de Cannes foi obrigado, por todas as razões e mais algumas, a premiar.

Um filme que a humanidade necessita.

Absolutamente obrigatório.


jef, novembro 2025

«Foi Só Um Acidente» (Yek tasadef sadeh / It’s Was Just Na Accident) de Jafar Panahi. Com Vahid Mobasseri, Mariam Afshari, Ebrahim Azizi, Hadis Pakbaten, Majid Panahi, Mohamad Ali Elyasmehr, Delmaz Najafi, Afssaneh Najmabadi, George Hashemzadeh, Liana Azizifay. Argumento: Jafar Panahi. Produção: Jafar Panahi, Philippe Martin. Fotografia: Amin Jafari. Som: Reza Heidari, Valérie Deloof, Nicolas Leroy. Decoração: Leila Naghdi Pari. Guarda-roupa: Leila Naghdi Pari. Irão / França / Luxemburgo, 2025, Cores, 103 min.

 


segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Sobre o livro «Bug» de André Ruivo, Bedeteca de Lisboa CML/ Imagens de Bolso 02, 2000



 


















































Tomemos as 33 legendas-títulos que, no final, ilustram as imagens deste senhor livro de capa dura preta e sobrecapa de tonalidades amora-suave (20,7 x 16 cm). 25 anos depois, visitemos uma suposta guerra-fria informática que levaria ao colapso do Universo quando fossem dadas as 12 badaladas na transição do milénio. Um perigo iminente observado pela arte gráfica de André Ruivo como complemento de diversos artigos que o jornal Público publicou entre fevereiro de 1999 e janeiro de 2000.

33 imagens catalogadas narrativamente pelas citadas legendas-títulos dos artigos do jornal. Imagens de fundo espesso e monocrático em certo jeito aterrador, apocalíptico, também político, demoníaco, expressionista (modo George Grosz). Aqui, a artimanha, o roubo, a fuga e o desespero final parecem ser os nossos fantasmas mais queridos consubstanciados em pequenos insectos de três pares de patas e em ácaros ou aracnídeos de mais algumas patinhas. O Mundo terminava ali!

Porém, 25 anos depois, o célebre “Bug do Milénio” faz-nos rir comparado com a efervescente e perigosíssima guerra quente mundial que agora assistimos diariamente.

Os desenhos de André Ruivo, expressando as pobres criaturas humanas enleadas nos cordéis de marionetas esgrimidas por americanos, russos e chineses, fazem esmorecer o sorriso inicial. Afinal, o Bug Bélico do Milénio pode estar bem a acontecer agora mesmo, um quarto de século mais tarde, sem baratas mas com bombas e drones. Sempre os mesmos protagonistas!

O trabalho que deu origem ao livro pode ser visitado na exposição patente em Setúbal até ao dia 29 de novembro de 2025, na Casa Bocage, integrada na Festa da Ilustração 2025 «É Preciso Fazer Um Desenho?».


jef, 22 de novembro 2025

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Sobre o filme «O Agente Secreto» de Kleber Mendonça Filho, 2025



 























O que me aliciou no filme foi o lado fantasioso, quase burlesco, certamente tirado de algumas notícias escanifobéticas saídas nos jornais de Recife, na altura (1977): essa perna cabeluda fugida da morgue, ou da boca de um tubarão, para ir moralizar ao pontapé os actos sexuais ilícitos que comprometiam a pacatez do jardim público, na calada da noite. Um lado gore extremamente divertido que me lembrou Tarantino ou o absurdo em «Veludo Azul / Blue Velvet» de David Lynch (1986) ou «Trenque Lauquen: Parte I e Parte II» de Laura Citarella (2023).

De resto, uma história cheia de saltos temporais e peripécias ao estilo romântico para mostrar um só actor Wagner Moura (Marcelo, Armando, Fernando) numa espécie de elogio novelesco ao filme de época.

O que mais me arrepiou foi o evitável lado piegas familiar que quase me fez pensar num hipotético plágio do «Cinema Paraíso» (Giuseppe Tornatore, 1988).

Enfim, filme a pensar no óscar!


jef, novembro 2025

«O Agente Secreto» de Kleber Mendonça Filho. Com Wagner Moura, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Isabél Zuaa, Robson Andrade, Rubens Santos, Licínio Januário, Joálisson Cunha, Marcelo Valle, Fabiana Pirro, Hermila Guedes, Gabriel Leone, Wilson Rabelo. Argumento: Kleber Mendonça Filho. Produção: Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho. Fotografia: Evgenia Alexandrova. Música: Mateus Alves, Tomaz Alves Souza. Guarda-roupa: Rita Azevedo. Brasil, França, Holanda, Alemanha. 2025, cores, 158 min.

 

Sobre o filme «O Riso e a Faca» de Pedro Pinho, 2025



 





 














Um filme-romance-reportagem que coloca Sérgio, investigador ambiental, no centro de Guiné-Bissau vindo de Portugal de carro. Vem substituir um italiano que desapareceu com uma história mais ou menos funesta. O  problema é que há uma estrada que pretende atravessar uma reserva natural onde existe um pequeno núcleo de hipopótamos raros e protegidos. Como fazer?

Filme agitadamente lento que coloca o “inocente” protagonista no centro de todas as questões que o mundo tem para oferecer – a história, as tradições, a sociologia, a antropologia, a política, os negócios, o ambiente, a libido, o sexo, a solidão.

Um filme como que um reflexo da cinematografia de Pedro Costa mas, pelo contrário, ultra saturado de luz. Um filme para ser ouvido com atenção, onde o som (Jules Valeur) é essencial pois o discurso é colocado como trama privilegiada na intriga, escutada em modo indirecto (de estúdio) para que percebamos que, talvez nesses exactos momentos, esteja a chave para entendermos como vemos um filme de duas horas e tal sem darmos por tal. Um filme de episódios entrecortados e entrecruzados.

Um filme essencialmente político. Por isso o título vai roubar um verso à canção de intervenção mais socialmente existencialista de Tom Zé, cantada em alegre convívio por todos dentro dos solavancos de um jipe:

“Quero ser o riso e o dente

Quero ser o dente e a faca

Quero ser a faca e o corte

Em um só beijo vermelho

Eu sou a raiva e a vacina

Procura de pecado e conselho

Espaço entre a dor e o consolo

A briga entre a luz e o espelho

Fiz meu berço na viração

Eu só descanso na tempestade

Só adormeço no furacão

Fiz meu berço na viração

Eu só descanso na tempestade

Só adormeço no furacão.”


jef, novembro 2025

«O Riso e a Faca» de Pedro Pinho. Com Sérgio Coragem, Cléo Diára, Jonathan Guilherme, Jorge Biague, Binta Rosadore, Nastio Mosquito, Giovanni Maucieri, Marçalina Djibril, Roxana Ionesco, Marinho de Pina, João Santos Lopes, Hermínio Amaro, Paulo Leal, João Pedro Sousa, Hamed Nah, Renato Sztutman, Bruno Zhu, Kody Mccree, Valentina Cirelli. Produção: Filipa Reis, Tiago Hespanha, Pedro Pinho, Eduardo Nasser. Fotografia: Ivo Lopes Araújo. Som: Jules Valeur. Portugal. 2025, cores, 211 min.

 


sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Sobre a peça «A Foz do Mekong» de Fernando Heitor, Boutique da Cultura 2025.



 
























(Um palco quase vazio. Escuro, excepto o lençol. Nada de relevante a assinalar a não ser a penumbra da solidão do corpo que dorme ainda – em jeito de didascália.)

É difícil falar de «A Foz do Mekong» sem revelar o climax da intriga ou, como se usa agora dizer “fazer spoiler”, pois se toda a sugestão inicial parece indiciar um simples acto de sedução entre o jovem estudante de geografia Martim Bernardes (Tomás Andrade) e o seu professor explicador, o eremita comedor de pizzas e frango, aos fins de semana, Afonso (Flávio Gil), tudo é desmontado no acto derradeiro deste breve scherzo trágico. Como nos textos ligados à ópera romântica. A expressão corporal dos actores, digamos coreografia a sublinhar a marcação de cena, sublinha esse dramatismo expressionista.

Estamos no Delta do Mekong, ou quase lá, por ignorância ou distração, esse intricado dédalo de canais, ilhas, vegetação tropical, mangais, barcos, comércio, tudo em agitado silêncio. (Uma Indochina de francofonia proibida que me fez transportar até ao filme «Apocalipse Now / Redux», 1979-2019.)

Contudo, ‘a viagem’ é apenas o início, o simulacro de uma mentira, a mentira de uma aproximação que parece inevitável. Quem é quem para o outro, o que devemos mostrar ou simular para conseguirmos o nosso intento, ou esconder o que somos? Esconder para o outro, ou para nós próprios como máscara de sobrevivência?

Afinal, os papéis estão sempre trocados numa confusa rede de laços e nós que se desejam e rejeitam alternadamente. Um suspense que se adensa progressivamente, levando o espectador a julgar, através de uma série de enganos revelados, que está perante uma trama psicológica, outro dédalo mas de identidades e classes sociais mentidas, transformando-se afinal no reflexo de uma pulsão ou de uma repulsão puramente paternal.

Saí da sala com uma sensação abstacta e, sem saber por que razão, lembrei-me do título de um livro maior de Ray Bradbury «A Morte É Um Acto Solitário».

Será o Amor também ele um acto falhado, por ser, no fim de contas, também um acto solitário, por truncado?

Por favor, vão ao teatro! Nunca houve tanto teatro, tão bom e tão consciente, em Portugal! E para todos os gostos!


jef, 13 de Novembro de 2025

«A Foz do Mekong». Texto e encenação: Fernando Heitor. Com Flávio Gil (Afonso) e Tomás Andrade (Martim Bernardes). Assistência de encenação: Teresa Zenaida. Luz: Paulo Graça. Música: João Paulo Soares. Produção: Camarote Produções. Fotografias: Fernando Santos. 80 minutos.


Boutique da Cultura | Um Teatro em Cada Bairro

14 e 15 de novembro, às 21h00

 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Sobre o livro «No Caminho da Poesia / Entre Sophia e Nava» de Carlos Mendes de Sousa, Documenta, 2025



 


















Estimo Carlos Mendes de Sousa como amigo, esse amável releitor de poesia. Talvez melhor, colector, recolector, recoleccionador de poesia. Compro o livro, também e ainda por isso. Acho um óptimo motivo.

Contudo, há mais, mesmo ainda sem ter lido as três fracções que o compõem: (Lugar da Poesia, Falar de Poesia e, por último, digamos, a imagem recordada da poesia). Carlos Mendes de Sousa, para além de tudo, o tal amável colector da dita, talvez mesmo dela tricotador, nunca deixa de se deslumbrar ou fantasiar por ela, mesmo se, imagino eu, o trabalho o obrigue, quantas vezes, a buscar mais o pó dos arquivos do que a poesia inscrita por baixo dessa poeira temporal. No fundo no fundo, ele é um angariador para a poesia. Página a página, e não de porta em porta.

Também o comprei porque nele se fala de cinco criaturas: Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade. Fiama Hasse Pais Brandão, Luís Miguel Nava e Eduardo Lourenço. Três das quais, amigas minhas de longa data, desde os caderninhos brancos, singelos, puros, fulcrais, da Limiar e da Caminho (mais tarde na obra reunida na Imprensa Nacional ou na Assírio & Alvim) ou do longo volume Obra Breve – Poesia Reunida. (Não sei porquê mas a poesia sempre fica mais acarinhada nos livros pequeninos).

Mas esses três autores perseguem-me. Perseguem-me no modo como tornam abstractos e afectivos uma quantidade tão grande de substantivos: flores e mares, andorinhas, seixos e árvores, beijos, pele ou esquecimento. (Eu que sou silvicultor!)

Se conheço alguns dos textos de Carlos Mendes de Sousa, vindos talvez de um moribundo (ou já defunto) Jornal das Letras, sei que vou agora aprofundar o caderno de substantivos desses três seres e procurar o dos outros dois que não conheço tão bem.

Tenho a certeza de que o amável e apaixonado lente não irá rasurar com gatafunhos de exegese sorumbática aqueles meus santos de oníricas viagens, antes, com parcimónia e sensibilidade, sublinhará o mais bonito vocábulo para cada um deles!

Depois de o ler voltarei aqui.


jef, 11 de novembro de 2025

 

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Sobre a peça «À Primeira Vista» de Suzie Miller. Teatro Maria Matos. 2025.

 

 

























Apesar da produtora Força de Produção, que tem levado à cena peças importantes para o grande público, não distribuir folha de sala (nem fazer descontos para qualquer classe de espectadores) pesquiso na net e encontro o que me provocara alguma estranheza: o título da peça – «À Primeira Vista». Não o conseguia fixar, talvez por ser de certo modo vago e anódino.

Assim entendo que a frase transpõe algo jurídico: ‘Prima Facie, expressão jurídica latina que significa exactamente: “À primeira vista”’, talvez, digo eu, de supetão, sem reflexão. Ignorância minha…

Um facto é que esta peça para uma só actriz, a maioríssima Margarida Vila-Nova!, a advogada de sucesso Teresa Oliveira (ou Teté, por charla sarcástica), pertencente ao terço sobrevivente do curso de Direito, ocupando todo o espaço cénico devido à dúvida instalada na sala de audiências. Uma verdade de contornos indistintos por ser sobre factos cuja memória se apresenta madrasta por dolorosas razões. Para uns, um truque para denegrir o réu e subir na carreira, para outros uma forma de evitar uma derrota, ou seja, de ficar em segundo lugar. Para a acusação, uma questão de honra, de moral, ou tão somente, uma questão de princípio. Ou seja, de verdade. Uma mulher no centro do tribunal, só, no meio do palco aparentemente nu, a fazer valer a sua carreira, a redimir o afecto que sente (mas teme exibir) pelas origens humildes, circulando no meio de uma advocacia de carreira, de família, de dinheiro.

Como diz o meu amigo José Manuel Marques, que sabe do assunto, uma peça que devia ser estudada no Conservatório de Teatro. Digo eu, uma peça a ser exibida no curso de direito, nos vários cursos sobre a condição social humana, sobre a condição feminina, esta que permanece no cerne de uma sociedade eternamente androcêntrica.

O encenador Tiago Guedes entrega a tarefa fantástica e hercúlea a Margarida Vila-Nova, o duro trabalho para uma actriz apenas, sem rede, sem um minuto de pausa, dentro de uma marcação de cena frenética, imparável, onde as diversas personagens se digladiam em múltiplos cenários imaginários, ocupando a gigantesca sala de audiências no interior de uma claustrófobica sociedade onde o direito na justiça tantas vezes é simplesmente uma miragem. Um jogo de poderosos, de dinheiro, de influência.

A não perder!


jef, 10 de Novembro de 2025

«À Primeira Vista». Texto: Suzie Miller. Com Margarida Vila-Nova. Encenação: Tiago Guedes. Tradução: Ana Sampaio. Cenário: Catarina Amaro. Desenho de luz: Nuno Meira. Sonoplastia: Carincur. Assistente de encenação: Luís Araújo. Figurinos: Rita Alves. Produção: Força de Produção com Margarida Vila-Nova. Fotografia: Filipe Ferreira. 90 minutos.

 

Teatro Maria Matos

22 de setembro a 9 de dezembro. Segunda-feira e terça-feiras às 21h00