quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Sobre o filme «Hair» de Milos Forman, 1979

 































Mal sabia eu que, cerca de cinquenta anos depois, estaria a ver um filme cujo sentido comum parece ser mais actual do que nunca. Sempre é melhor 'fazer amor do que fazer guerra', dizia-se na altura. Contudo, hoje em dia, num planeta em que a violência, o belicismo e a morte se tornaram, de modo despudoradamente comercial, moeda corrente de troca por petróleo sujo e minerais raros para baterias de carros e telemóveis, «Hair», o musical e o filme de Milos Forman, surge como uma espécie de comovente figuração dramática e universal, quase irreal, quase ecuménica, quase religiosa do que o já referido planeta deveria ter-se tornado. Mas não se tornou!

Há cinquenta anos, trauteava eu (sem tradução) o “Aquarius” ou “Let the Sunshine In” sem perceber bem do que por ali se cantava – a luta contra a guerra (do Vietnam), o pacifismo, o amor livre e a amizade plena, o planfeto contra o racismo e a homofobia, a liberdade no interior profundo da sociedade que deveria ser transformada. Cinquenta anos depois, o filme toca-me profundamente, parece-me quase uma elegia fúnebre e ao mesmo tempo alegre e esperançosa por um Planeta que ainda um dia sorrirá pelo seu futuro.  

Milos Forman transpõe sem excesso, comedidamente, essa musical luta de gerações e de classes, esse libelo simples pela paz e pela alegria de viver em tranquila comunhão com os outros e em democracia.

(Devemos ainda tomar boa nota de que, no final, o general que comanda os militares em formação prontos para o embarque em direcção à morte é, ironicamente, representado pelo realizador (e actor) mais carismático e irreverente de Hollywood, sim esse que realizou «Johnny Guitar» (1954) ou «Fúria de Viver» 1955), Nicholas Ray).  

Um filme a rever em comoção, sempre e agora!


jef, dezembro 2025

«Hair» de Milos Forman. Com John Savage, Treat Williams, Beverly D'Angelo, Annie Golden, Dorsey Wright, Don Dacus, Cheryl Barnes, Richard Bright, Nicholas Ray, Charlotte Era, Miles Chapin, Fern Tailer, Charles Denny, Herman Meckler, Agness Breen, Antonia Rey, George J. Manos, Linda Surh, Joe Acord, Michael Jeter. Argumento: Michael Weller segundo a peça musical composta por Gerome Ragni e James Rado. Produção: Michael Butler, Lester Persky. Fotografia: Miroslav Ondrícek. Coreografia: Twyla Tharp. Guarda-roupa: Ann Roth. EUA. 1979, cores, 121 min.


quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Sobre o livro «Lavagante – Encontro Desabitado» de José Cardoso Pires, Relógio D’Agua, 2025 (1968).


 









Sempre existe a penumbra da inquietação, talvez mesmo uma insolvência moral nas paisagens de José Cardoso Pires. Não temos a certeza onde estamos, onde nos devemos segurar. Contudo, o lugar final é certo. Um encontro desabitado. Geração de 45. Anos 60.

Catorze breves capítulos centrados na confissão nocturna entre amigos. À beira de uma praia, na berma de uma estrada, com uma sombra sobre a figura de Cecília. O Jornalista escuta o Seu Amigo, Daniel, que vai refazendo a paisagem de memória, essa tal moralidade que parece não ter solução.

«Assim, a sombra de Cecília paira sobre mim e o Meu Amigo, dois conversadores nocturnos sentados sob o alpendre duma casa de praia. É por enquanto uma sombra, um contorno de mulher, se quiserem. Esse contorno compõe-se de instantes de memória, deslocados no tempo e na distância, tal como sucede com os farolins das embarcações de pesca que andam ao largo: existem mas levantam-se e desaparecem ao sabor da ondulação. É necessária a memória (esse terceiro plano ou esse poder de recriar que é, ainda, memória, cheiro e reconhecimento) para situar os farolins dos barcos no verdadeiro lugar em que se encontram e construir, para além dos nossos olhos, todo um rosário de luzes boiando nas águas em trevas. Então poderemos traçar o desenho exacto dum cerco de pesca, uma campanha de homens sonolentos, o enorme saco de rede que devora os peixes no próprio ventre do mar…»

Em José Cardoso Pires a solução encontra-se sempre na imagem, ou no seu reflexo cognitivo. (Não é difícil de compreender por que é um autor tão cinematográfico.)

Em «Lavagante», a fragmentação do texto alterando anacronicamente a respectiva localização temporal e geográfica; a ideia de que seria um texto ainda distante da obsessiva correcção usualmente praticada pelo autor, leva-nos a um mundo opressivo, também ele fragmentado pela perseguição de um regime predador. Um mundo dramático e também teatral onde a sedução, a perseguição e a predação são traçados em planos concêntricos mas enviesados perante o leitor. Será que a sedução, a perseguição e a predação fazem parte do mesmo jogo? Do jogo em que o lavagante – de tenebrosa memória, paciente e obstinado – seduz com alimento o safio no seu próprio esconderijo para depois melhor o desfrutar?

É muito interessante observar a estratégia do escritor em abrir o jogo logo no início do segundo capítulo, enquanto o belo filme de Mário Barroso (2025), livremente adaptado por António-Pedro Vasconcelos, revela a parábola do crustáceo apenas no final, como alegoria triste, um nefasto epílogo amoroso para um país a braços com a insolvência do  fascismo.

jef, dezembro 2025

 

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Sobre a peça «A Velha Senhora» de Márcia Cardoso. Cine-Teatro Turim, 2025.



 

















































Ouve-se «Os Vampiros» de José Afonso (1963).

Passam cinquenta anos do 25 de abril de 1974, e o melhor sangue da Quinta da Marinha conspurca-se com o pior da Cova da Moura. Já nada parece estar seguro para a requintada família de vampiros que se resguarda numa mansão em Sintra… Bem, Sintra não é bem, mais Rio de Mouro… E naquele dia de 2024, na Avenida da Liberdade, durante a manifestação, o sangue recolhido a custo pelo esforçado e algo desprezado Gino, ou Higino (Ricardo Barbosa), sabe um pouco a comunista. Problema grave…

Que fazer?

O melhor é voltar às origens e apelar ao regresso da Velha Senhora (António Ignês) que surge cantando «Desfolhada» (Simone de Oliveira / Nuno Nazareth Fernandes / Ary dos Santos, 1969). A dita Senhora parece encantada com o actual avanço das notícias falsas, do totalitarismo fascista, das alterações climáticas. Contudo, as suas intenções, a sua presença durante um ano naquela casa, estão a levar ao desespero de quem a invocou…

Hoje em dia, o teatro voltou a ter um papel importante na cultura portuguesa. Tornou-se politicamente activo, despretensiou-se, libertou-se de amarras sociais, de guetos culturais ou espartilhos intelectuais. O teatro em Portugal não tem patronos arregimentados ou tiques eufemísticos. Enche salas, convoca a consciência dos espectadores, diverte-os. Chama-os à razão assumindo-se como a arte popular por excelência. Sem rodriguinhos ou pudor.

«A Velha Senhora» é um óptimo exemplo. Devemos ter muita atenção ao esforço artístico de produção que o sustenta pois, apesar de pujante, o teatro em Portugal só sobrevive pelo absoluto amor à arte e ao esforço de sobrevivência de quem por ele continua a lutar.

Vampiros de todo o Mundo, uni-vos!

Temos de ir ao teatro!


jef, 7 de Dezembro de 2025

«A Velha Senhora». Texto e encenação: Márcia Cardoso. Com António Ignês (a Velha Senhora), Diana Vaz (Salete), Francisco Beatriz (Salazar), Marta Gil (Marcela), Ricardo Barbosa (Higino), o Gato Preto (Cunhal). Voz: João Tempera. Assistência de encenação: Joana Almeida. Desenho de Luz e Sonoplastia: Paulo Rodrigues, Rúben Brandão. Figurinos: João Telmo. Guarda-roupa: Besta de Estilo. Produção: Meia Palavra Basta – Associação Cultural. 110 minutos.

 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Sobre o livro «O Primo Basílio, Episódio Doméstico» de Eça de Queirós, Book Cover, 2022 (1877)



 







Uma obra e tanto!

Como acabar um romance, desvalorizando-lhe o estratagema?

Colocar como subtítulo, em jeito de epígrafe explicativa, “Episódio doméstico”.

Dar enlevo romântico ao realismo, descrevendo pormenorizadamente as figuras que irão oferecer o mote à intriga: Juliana, a fulminante, Sebastião, o estratega, Leopoldina, a libertina. Assim, as personagens que deviam ser as centrais, Luísa e Jorge, ficam numa interessante poalha nevoenta ou insonsa, apesar de intensa.

Povoar o texto de figuras de uma ironia descomunal: o médico Julião Zuzarte, a apaixonada D. Felicidade, o dramaturgo Ernestinho, o banqueiro Castro, a estanqueira, a carvoeira, o Paula dos móveis, as vizinhas Azevedo, a cozinheira Joana, a inculcadeira tia Vitória.

E, claro, o celebérrimo conselheiro Acácio, com o seu necrológio e os dois travesseirinhos.

E como móbil para a acção central, o galã Primo Basílio (mais a sua sombra, o Visconde Reinaldo).

Colocar toda a burguesia de 1877 a tossir e escarrar contra a própria burguesia, com laivos de republicanismo e, simultaneamente, de devoção pelos veludos da família real, no São Carlos ouvindo o “Fausto”.

Essa toda burguesia pequena numa rua apenas. E Lisboa encalorada percorrida num ápice, confinada ao pequeno bairro que vai do Tejo à Patriacal, ao Príncipe Real, passando pelo Camões, por São Roque ou São Pedro de Alcântara, pelo passeio público subindo do Rossio. Com uma viagem ao longínquo Lumiar e umas fugidas ao Paraíso, lá para as bandas de um incógnito Arroios.

Tudo descrito cinematograficamente, filmado com cores vivas, e narrado rápido, tão rápido quanto o realismo manda e os assombrosos diálogos impõem!

Uma Lisboa pequenina onde todos se encontravam a cada momento. Todos intrigam, suspeitam, vigiam, velam, num clima perfeito para aniquilar uma sociedade burguesa e monárquica prestes a sucumbir por velhice e pelas dívidas. Ainda há quem peça ao Senhor que envie um novo terramoto, mas ele mantém-se quedo.

«Então havemos de dormir no mesmo quarto? Você pensa que o Sr. D. Basílio é meu amante, seu devasso? Está tudo cheio? Mas quem se lembre de vir a Portugal? Estrangeiros? É justamente o que me espanta! É o clima, é o clima que os atrai! O clima, este prodigioso engodo nacional! Um clima pestífero! Não há nada mais reles que um bom clima!...»

Assim fala Visconde Reinaldo num esplendoroso, desconcertante, cómico e esclarecedor capítulo derradeiro.

Eça de Queirós é o máximo!

 

jef, dezembro 2025

Sobre o filme «Wicked: Pelo Bem / Parte 2» de Jon M. Chu, 2025



 














Como muito bem diz um amigo meu, o ápice do filme está no final da primeira parte / primeiro acto: “Defying Gravity”. Toda a luminosidade cénica, o apuro coreográfico, a ironia do enredo, a estratégia épica da intriga e a definição moral da história está contida na primeira parte. Inclusive, apenas um pequeno apontamento de Dorothy, de Toto, do Homem de Lata, do Espantalho e do Leão Medroso. Como aparição fugaz surgem ali caminhando ao longe pela Estrada de Tijolos Amarelos. Mas, afinal, esta será a história que antecede e compreende todo o pesadelo, o delírio febril que Dorothy sofre em «O Feiticeiro de Oz» (Victor Fleming, 1939).

Por isso, estranho a diminuição da estratégia dramática, algo confusa para mim (mesmo até musicalmente, esta por pouco apelativa relativamente a toda a parte anterior), com a aparição explicativa do Homem de Lata, do Espantalho ou do Leão Medroso, já que a Dorothy surge apenas como uma sombra para a enfrentar finalmente a Bruxa do Oeste. Também no desmascarar do Feiticeiro, na acusação da Madame Morrible, ou mesmo na diminuição da personalidade justiceira de Elphaba e na construção da agora séria, vencedora e magnânima Glinda.

Fica-nos, isso sim, a poderosíssima presença de Cynthia Erivo. A verdadeira feiticeira do musical.


 jef, novembro 2025

«Wicked: Pelo Bem / Parte 2» (Wicked: For Good / Part 2)» de Jon M. Chu. Com Cynthia Erivo, Ariana Grande, Jeff Goldblum, Michelle Yeoh, Jonathan Bailey, Ethan Slater, Marissa Bode, Peter Dinklage, Andy Nyman, Courtney Mae-Briggs, Bowen Yang, Bronwyn James, Aaron Teoh Guan Ti, Shaun Prendergast, Keala Settle, Stephen Schwartz, Idina Menzel, Kristin Chenoweth, Sharon D. Clarke, Jenna Boyd, Colin Michael Carmichael. Argumento: Winnie Holzman e Dana Fox segundo o romance de Gregory Maguire e o musical de Winnie Holzman. Produção: David Stone. Fotografia: Alice Brooks. Música: John Powell e Stephen Schwartz. Guarda-roupa: Paul Tazewell. Cenografia: Lee Sandales. EUA, 2025, Cores, 137 min.

 

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Sobre o filme «Foi Só Um Acidente» de Jafar Panahi, 2025



 






















Os carros de Jafar Panahi. Os carros onde o realizador esconde sistematicamente a sua cinematografia. Esconde-a por que assim mantém a sua política, a sua ternura, fora do alcance das garras constrangedoras da censura. Ali dentro mantém a sua intimidade incólume, o seu bom humor, mesmo o seu carinho pela história, o amor pelas suas personagens. Ali elas estão seguras, e junto do seu coração. Até «Foi Só Um Acidente».

Em «Foi Só Um Acidente», Jafar Panahi abriu as portas da carrinha de Vahid (Vahid Mobasseri) à violência da tortura, à agressividade de um regime ignóbil que criou algozes ferozes e vítimas enclausuradas na memória dos seus próprios traumas de guerra. A carrinha de Vahid encerra toda a sociedade claustrofóbica, a claustrofobia que opõe a justiça à vingança. A carrinha cheira mal, ao vómito da raiva, ao suor do condenado, às fezes imundas de uma dúvida permanente. O que fazer com a memória do som de uns passos que coxeiam, de um cárcere infecto, da tortura, do medo da morte iminente, a memória de um crime colectivo e de vidas e famílias destroçadas?

Mesmo assim, a alma boa de Jafar Panahi faz-nos sorrir pelo meio de um filme violentíssimo, a que ele, sempre benevolente, se obrigou a realizar. Por mais de uma vez, fora daquele sarcófago, as pessoas circulam em volta e olham para aquela trupe ambulante com os olhos de espectadores que afinal assistem a uma comédia. E o realizador sabe como o tempo da tragédia e o tempo da comédia são distintos, mas inevitáveis por justapostos. A referência à arvore seca dos enforcados frustrados de «À Espera de Godot» é bem prova de tal consciência.

Sim, um filme violentíssimo mas onde a esperança na humanidade e no seu bom juízo, na sua regeneração é permanente e, afinal, conclusiva.

Um filme a que o Festival de Cannes foi obrigado, por todas as razões e mais algumas, a premiar.

Um filme que a humanidade necessita.

Absolutamente obrigatório.


jef, novembro 2025

«Foi Só Um Acidente» (Yek tasadef sadeh / It’s Was Just Na Accident) de Jafar Panahi. Com Vahid Mobasseri, Mariam Afshari, Ebrahim Azizi, Hadis Pakbaten, Majid Panahi, Mohamad Ali Elyasmehr, Delmaz Najafi, Afssaneh Najmabadi, George Hashemzadeh, Liana Azizifay. Argumento: Jafar Panahi. Produção: Jafar Panahi, Philippe Martin. Fotografia: Amin Jafari. Som: Reza Heidari, Valérie Deloof, Nicolas Leroy. Decoração: Leila Naghdi Pari. Guarda-roupa: Leila Naghdi Pari. Irão / França / Luxemburgo, 2025, Cores, 103 min.

 


segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Sobre o livro «Bug» de André Ruivo, Bedeteca de Lisboa CML/ Imagens de Bolso 02, 2000



 


















































Tomemos as 33 legendas-títulos que, no final, ilustram as imagens deste senhor livro de capa dura preta e sobrecapa de tonalidades amora-suave (20,7 x 16 cm). 25 anos depois, visitemos uma suposta guerra-fria informática que levaria ao colapso do Universo quando fossem dadas as 12 badaladas na transição do milénio. Um perigo iminente observado pela arte gráfica de André Ruivo como complemento de diversos artigos que o jornal Público publicou entre fevereiro de 1999 e janeiro de 2000.

33 imagens catalogadas narrativamente pelas citadas legendas-títulos dos artigos do jornal. Imagens de fundo espesso e monocrático em certo jeito aterrador, apocalíptico, também político, demoníaco, expressionista (modo George Grosz). Aqui, a artimanha, o roubo, a fuga e o desespero final parecem ser os nossos fantasmas mais queridos consubstanciados em pequenos insectos de três pares de patas e em ácaros ou aracnídeos de mais algumas patinhas. O Mundo terminava ali!

Porém, 25 anos depois, o célebre “Bug do Milénio” faz-nos rir comparado com a efervescente e perigosíssima guerra quente mundial que agora assistimos diariamente.

Os desenhos de André Ruivo, expressando as pobres criaturas humanas enleadas nos cordéis de marionetas esgrimidas por americanos, russos e chineses, fazem esmorecer o sorriso inicial. Afinal, o Bug Bélico do Milénio pode estar bem a acontecer agora mesmo, um quarto de século mais tarde, sem baratas mas com bombas e drones. Sempre os mesmos protagonistas!

O trabalho que deu origem ao livro pode ser visitado na exposição patente em Setúbal até ao dia 29 de novembro de 2025, na Casa Bocage, integrada na Festa da Ilustração 2025 «É Preciso Fazer Um Desenho?».


jef, 22 de novembro 2025