Os
carros de Jafar Panahi. Os carros onde o realizador esconde sistematicamente a
sua cinematografia. Esconde-a por que assim mantém a sua política, a sua
ternura, fora do alcance das garras constrangedoras da censura. Ali dentro mantém
a sua intimidade incólume, o seu bom humor, mesmo o seu carinho pela história,
o amor pelas suas personagens. Ali elas estão seguras, e junto do seu coração.
Até «Foi Só Um Acidente».
Em
«Foi Só Um Acidente», Jafar Panahi abriu as portas da carrinha de Vahid
(Vahid Mobasseri) à violência da tortura, à agressividade de um regime ignóbil
que criou algozes ferozes e vítimas enclausuradas na memória dos seus próprios
traumas de guerra. A carrinha de Vahid encerra toda a sociedade claustrofóbica,
a claustrofobia que opõe a justiça à vingança. A carrinha cheira mal, ao vómito
da raiva, ao suor do condenado, às fezes imundas de uma dúvida permanente. O
que fazer com a memória do som de uns passos que coxeiam, de um cárcere
infecto, da tortura, do medo da morte iminente, a memória de um crime colectivo e de
vidas e famílias destroçadas?
Mesmo
assim, a alma boa de Jafar Panahi faz-nos sorrir pelo meio de um filme
violentíssimo, a que ele, sempre benevolente, se obrigou a realizar. Por mais
de uma vez, fora daquele sarcófago, as pessoas circulam em volta e olham para
aquela trupe ambulante com os olhos de espectadores que afinal assistem a uma
comédia. E o realizador sabe como o tempo da tragédia e o tempo da comédia são distintos,
mas inevitáveis por justapostos. A referência à arvore seca dos enforcados frustrados
de «À Espera de Godot» é bem prova de tal consciência.
Sim,
um filme violentíssimo mas onde a esperança na humanidade e no seu bom juízo,
na sua regeneração é permanente e, afinal, conclusiva.
Um
filme a que o Festival de Cannes foi obrigado, por todas as razões e mais
algumas, a premiar.
Um
filme que a humanidade necessita.
Absolutamente
obrigatório.
jef,
novembro 2025
«Foi
Só Um Acidente» (Yek tasadef sadeh / It’s Was Just Na Accident) de Jafar Panahi.
Com Vahid Mobasseri, Mariam Afshari, Ebrahim Azizi, Hadis Pakbaten, Majid
Panahi, Mohamad Ali Elyasmehr, Delmaz Najafi, Afssaneh Najmabadi, George
Hashemzadeh, Liana Azizifay. Argumento: Jafar Panahi. Produção: Jafar Panahi, Philippe Martin. Fotografia:
Amin Jafari. Som: Reza Heidari, Valérie Deloof, Nicolas Leroy. Decoração:
Leila Naghdi Pari. Guarda-roupa: Leila Naghdi Pari. Irão / França / Luxemburgo,
2025, Cores, 103 min.


































