quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Sobre o filme «A Vida Entre Nós» de Stéphane Brizé, 2023


 









Devendo sempre manter a devida distância entre os filmes que se vão vendo, existe, contudo, no nosso cérebro, um factor silogístico que provoca tal estranha ligação. «A Vida Entre Nós» (que poderia antes ter adoptado o título português de ‘Estação Morta’) fez-me lembrar dois filmes de culto: «Breve Encontro» (David Lean, 1945) e «As Pontes de Madison County» (Clint Eastwood, 1995).

Talvez seja por esse encontro, inusitado ou ansiando, entre Mathieu (Guillaume Canet) e Alice (Alba Rohrwacher), numa altura em que a costa atlântica francesa, ventosa e revolta, não convida a banhos e provoca a normal confrontação com o inverno de todos os balanços, mais ou menos pretéritos. 

A contenção cenográfica que envolve sempre a solidão das personagens em confronto com a tempestuosa costa rochosa da Bretanha; a linha narrativa, contida e inesperada, provocando o mistério e a comoção; a terna convocação de episódios, cenários e personagens reais – quase reportagem –, fazem do filme uma peça única, emocional e carinhosa, no panorama cinematográfico contemporâneo, a braços (naturalmente, como deve ser a verdadeira arte) com a violência em que o planeta se afundou.

Um filme que se centra em dois dos actores do meu coração: Guillaume Canet («Vidas Duplas» de Olivier Assayas, «Ou Nadas ou Afundas» de Gilles Lellouche, ambos de 2018) e, muito em especial, a belíssima Alba Rohrwacher («Feliz como Lázaro» de Alice Rohrwacher, 2018, «Três Andares» de Nanni Moretti, 2021 ou «Marcha Sobre Roma» de Mark Cousins, 2022).

A não perder de vista do coração!


jef, novembro 2024

«A Vida Entre Nós» (Hors-Saison) de Stéphane Brizé. Com Guillaume Canet, Alba Rohrwacher, Sharif Andoura, Marie Drucker, Emmy Boissard Paumelle, Lucette Beudin, Gilberte Bellus, Hugo Dillon, Stéphane Brizé, Johnny Rasse, Jean Boucault, Pauline Tamestit-Le Morlec, Tina Chemillé, Corentin Le Divellec. Argumento: Stéphane Brizé, Marie Drucker. Produção: Guillaume Canet, Sidonie Dumas. Fotografia: Antoine Héberlé. Música: Vincent Delerm. Guarda-roupa: Caroline Spieth. França, 2023, Cores, 115 min.

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Sobre o disco «ReEncanto» de Mayra Andrade, Komos 2024










No âmbito do Festival de Jazz de Londres, novembro de 2023, Mayra Andrade acompanhada apenas a guitarra acústica de Djodje Almeida, sobem ao palco e gravam ao vivo estas 18 canções, oferecendo-as ao público assim numa linha pura onde a voz e as cordas da guitarra vão fazendo uma conversa que se solta das raízes cabo-verdianas libertando-as para o singelo devaneio do jazz e da batida do coração. A voz do coração, simplesmente. A grande parte dos temas vêm dos álbuns de originais «Lovely Difficult» e «Manga» (Sony, 2013, 2019).

Aqui, dentro de certo eco (ou mesmo espiritualidade) oferecidos pelo espaço da Union Chapel, “Plena” ou “Navega” ou “Kodé” surgem como que a cappella, soltando-se a voz madura de Mayra Andrade da base das cordas percutidas de Djodje Almeida, e vice-versa, tornando-se numa espécie de comunicação poética sobre as palavras cantadas, uma vibração sónica muito íntima entre a música e os poemas de uma profunda simplicidade.

O que mais espanta em Mayra Andrade é a capacidade de fazer a música de Cabo Verde uma conquista sua, reconhecível por única, apropriando-se dela através de um modo muito especial: modernista, eléctrico ou agora de modo apenas acústico, um certo modo muito urbano e cosmopolita.

(Embora Mayra não a cante aqui neste disco ao vivo, o último álbum de originais contém uma canção linda, linda “Guardar Mais” que vou a correr ouvir e re-ouvir no dia de hoje, 19 de novembro, que faz um ano que morreu Sara Tavares. É de sua autoria e conta e canta a saudade que sente da sua avó Eugénia.)

jef, novembro 2024

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Sobre o disco «Gente» de Nancy Vieira, Galileo 2024







A música cravada em Cabo Verde é uma espécie de porto de abrigo. Nancy Vieira será a sua alegria, a sua transformadora revertendo essa metamorfose em tradição. E assim voltamos ao início. Sabe-me bem.

Mário Lúcio Sousa, Osvaldo Dias, Fred Martins, Adalberto Silva, Remna, Luís Firmino e Teófilo Chantre. E, claro, B. Leza. E a produção de Amélia Muge, António José Martins e Nancy Vieira.

“O Fado Crioulo” com António Zambujo, “Meditá” com Paulo Flores ou “Rosa Sábi” de e com Amélia Muge.

Quem não se comove (ou dança) ao som desta miscelânea musical? Mornas, coladeiras, fados ou tudo misturado. Quem não se tocará com essa forma erudita de tocar música popular ao som de violino, acórdão ou clarinete…?

Quem não se encanta com o modo de arranjos clássicos mas sub-reptícios, colocando ali assobios e sussurros, baixos, cavaquinhos e percussões costuradas com sensibilidade e perícia mas sem nunca desvirtuar a mistura musical inicial?

Nancy Vieira tem uma voz terna, talvez agora mais grave, que dá gravidade à distância e solidão geográficas sem esquecer de dar alegria a cada passo de dança.

E, atenção, termina com essa homenagem à Morna e à Morabeza cabo-verdianas numa espécie de valsa lenta e amorosa – “Dona Morna”.

Nancy Vieira, a revisitar, ouvindo, sempre!


jef, novembro 2024

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Sobre o filme «Anora» de Sean Baker, 2024














Sempre que vejo filmes como este lembro-me de Frank Capra. Essa amabilidade moral (política) servida por grandes actores, diálogos rigorosos, sinceros e sucintos, tudo no interior de uma história que, aparentemente, não perde tempo com pormenores, antes prefere expô-los bem visíveis mas laterais, apenas oferecidos aos que olham os seus filmes com máxima atenção. Onde a maldade, se existe, resulta do fruto das circunstâncias e a sua desmontagem é o cerne da intriga.

Anora (ou Ani, como ela prefere ser chamada para distanciar-se das suas origens eslavas) é uma espécie de Cinderela (musculada e de topete) que trabalha num clube de acompanhamento sexual em Nova Iorque, cumprindo o seu trabalho com rigor e profissionalismo. Até que surge ali um quase adolescente, quase pueril, Ivan (Mark Eydelshteyn), filho-família russa de enorme poderio económico, pronto a divertir-se até ao limite da loucura e do esbanjamento. Até ao casamento nocturno naquelas capelas cor-de-rosas e iconoclastas de Las Vegas. O resto do filme é como se imagina e o espectador vai seguindo a trupe de “funcionários” e “solicitadores” que a mando da família de Ivan tenta resolver a questão em definitivo.

Mas o filme (que arrecadou a palma de ouro em Cannes) coloca-nos perante a força interior e a construção da personalidade fortíssima de Anora, edificada pela magnífica, extraordinária Mikey Madison, uma mulher que aos poucos comanda definitivamente o percurso da história e as peripécias humorísticas de uma incrível perseguição automóvel. Contudo, o que move Anora é mesmo o sonho proposto de uma vida amorosa ideal que ela, afinal, assumiu como realidade, mas que, mais tarde, vai substituir pela defesa da individualidade e da dignidade femininas, culminando com o assombroso diálogo final com Igor (Yura Borisov) que abre espaço para o desenlace final, pungente, silencioso e nevado, à boa maneira dos mais belos clássicos do cinema americano.

Um dos grandes filmes de 2024.

E prestaremos muita atenção à actriz Mikey Madison e ao realizador Sean Baker, a quem devemos outro filme inteligente, emocional e político: «The Florida Project» (2017).


jef, agosto 2024

«Anora» de Sean Baker. Com Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Paul Weissman, Lindsey Normington, Emily Weider, Luna Sofía Miranda, Yura Borisov, Vincent Radwinsky, Brittney Rodriguez, Sophia Carnabuci, Anton Bitter, Ella Rubin, Ross Brodar, Zoë Vnak, Vlad Mamai, Maria Tichinskaya, Ivy Wolk, Karren Karagulian, Vache Tovmasyan, Morgan Charlton, Nazar Khamis, Charles Jang, Lana Svidonovich. Argumento: Sean Baker. Produção: Sean Baker, Alex Coco, Samantha Quan. Fotografia: Drew Daniels. Decoração: Christopher Phelps. Guarda-roupa: Jocelyn Pierce. EUA, 2024, Cores, 139 min.

domingo, 10 de novembro de 2024

Sobre o livro «Estilhaços» de Bret Easton Ellis, Asa, 2023. Tradução de Elsa T.S. Vieira


 









Este é um romance desabrido. Sem paninhos quentes ou rodriguinhos que facilitem a vida ao leitor. Uma espécie de livro policial ou de suspense ou thriller que fica suspenso entre a realidade e a vocação literária de alterar a realidade para melhor a fixar, melhor, para a alterar e assim ficar mais compreensível, mais dura, ou mais ficcional.

Califórnia, Los Angeles, colégio Buckley, 1981. O finalista Bret Ellis tem 17 anos e anda a escrever o seu primeiro romance «Menos que Zero». Ele e os colegas vivem em grupo, numa "bolha", a amizade protege-os no conforto da abundância e na independência e distanciamento familiares. O dinheiro, o sexo e as drogas não parecem ser problema no interior do luxo e da luminosidade de Los Angeles. As cassetes com as novidades discográficas e os teatros exibindo no grande ecrã os êxitos cinematográficos fazem de banda sonora e banda visual para o dia a dia daqueles adolescentes que ainda não estão preparados para enfrentar a visão adulta do mundo ou perder a alheada inocência que teimam em praticar. De «Shining» de Stanley Kubrick (1980) a «Icehouse» (1981). Apenas a homossexualidade vai ficando, oculta mas usufruída, suspensa na moldura do quadro do privilégio de uma sociedade. Até que, no último ano de liceu, é transferido um novo aluno, misterioso e atraente, no mesmo momento em que dá alvíssaras a actividade criminosa de um grupo que se aproxima, rondando, com uma série tenebrosa de assassinatos.

Em «Estilhaços» não existe contemplações com as narrativas sobre o sexo, as drogas e os cadáveres doa animais, ou com as descrições pormenorizadas das cores, das roupas, dos ambientes, das mansões e piscinas particulares, da geografia da costa californiana. Também do horror. Verdade ou simulacro literário?

Um quase diário sobre a especulação artística numa atmosfera que talvez já tenhamos vislumbrado com os livros de Raymond Chandler. Ou com «Mulholland Drive» (David Lynch, 2021) ou «Era Uma Vez Em... Hollywood» (Quentin Tarantino, 2019). Só que neste "filme" existe uma nova definição para a literatura de entretenimento e horror.

Silêncio e Mentira e Torpor e Medo são os substantivos que suportam esta narrativa imparável com uma estrutura exegética construída em finíssima minúcia.

Quem não se sentir tocado por estes substantivos adjectivados e continuar a dormir descansado depois da leitura de «Estilhaços» de Bret Easton Ellis já terá vendido o coração ao diabo.


jef, novembro 2024

sábado, 9 de novembro de 2024

Sobre a peça «Macbeth - A Peça Escocesa» de Manuel Jerónimo, a partir de William Shakespeare. Boutique da Cultura, 2024


 




























Uma peça amaldiçoada, por feminista. Lady Macbeth é mais famosa e engenhosa que o próprio Macbeth. Macbeth, pasto de visões e dúvidas, de bruxedos e ambições alheias, bons presságios que se tornam maus agoiros por deficiente interpretação, ventres defuntos que dão à luz nados vivos. E, contudo, as florestas movem-se, assim diz Shakespeare, eternamente plagiado por Orson Welles (1948) ou Akira Kurosawa («O Trono de Sangue» 1957) . Ou por Manuel Jerónimo…

O problema é que, agora, quase toda a intriga (e sanguinárias facadas) se move por cima de um balcão de haut cuisine ou, mais correctamente, por baixo do citado balcão. Onde permanecem os cinco actores transferindo a ansiedade psicológica ou o desvario psicopata da tragédia para uma tresloucada comédia cumprida sob a nevrótica paranoia das hauts cuisines televisivas.

E como é excelente Manuel Jerónimo a avisar que os espectadores vão estar sob vigilância de diabólicos prenúncios e que não devem sequer mencionar esse nome proibido. E como a plateia fica a rodear de modo acolhedor, íntimo, quase cúmplice, o palco de toda a trágica manipulação.

E como os cinco actores cumprem sem parar, numa velocidade para além do cruzeiro, todos os vaticínios sanguinolentos tendo nas mãos apenas a sua perfeita veia cómica e meia dúzia de tachos e frigideiras, uma ou duas facas que parecem dezenas, um ou dois tomates, (um pepino, claro!) e meia dúzia de tartes de natas à boa maneira da ancestral comédia vaudeville de Hollywood.

A encenação, os elementos cenográficos, o diálogo e a transposição dos personagens de tragédia para comédia numa movimentação de cena radical feita em poucos metros quadrados, fazem daqueles actores como que extraordinárias marionetas, ao mesmo tempo suspensas e escondidas.

Um exemplo de como hoje em dia o teatro em Portugal se move por óptimas águas, claras, inteligentes e populares.


jef, 7 de novembro de 2024


«Macbeth - A Peça Escocesa» Texto e encenação: Manuel Jerónimo, a partir de William Shakespeare. Direcção Artística: João Borges de Oliveira. Com Ana Isabel Sousa (Bruxa(s) / Lady Macbeth), Bruno Realista (Banquo / Donalbain, filho mais novo de Duncan), David Correia (Macbeth), Fernanda Paulo (Duncan, Rei da Escócia / Assassino) e Gonçalo Sítima (Malcolm, filho mais velho de Duncan /Assassino). Cenografia: Silveira Cabral. Desenho de Luz e Operação Técnica: Tiago Santos. Produção: Boutique da Cultura. 75 minutos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Sobre o livro «Visitar Amigos e Outros Contos» de Luísa Costa Gomes, Dom Quixote, 2024. Ilustrações de Daniel Lima.



 














«Não há dissimulação entre nós. Não se encontram sentimentos ambivalentes, nem emoções explosivas, nem conflitos por resolver. Sonhos são íntimos, de cada um, não devem ser devassados. Como nos tempos antigos, têm o seu parentesco na leitura das vísceras ou no voo de certos pássaros. São agoiros, presságios, só para quem os quiser ler.»

E mais à frente, terminando

«É sem respirar que admiro e desejo essas estrelas, ordem e ornamento da Terra. Siderada, estou na outra imensidão. Entre o embaciar e o desembaciar do vidro da janela, peço aos olhos que vejam o mais que podem e eles, amigos, recolhem a luz de todas as coisas apagadas.»

Estas palavras saem do conto que dá título ao livro. E não será por acaso. O conto resume a mestria iconoclasta da escritora. Talvez seja mesmo aquele que fazendo deambular a personagem pelas fracturadas paisagens berlinenses, procurando o encontro com amigos mas fugindo constantemente das responsabilidades impostas pelos guias turísticos, termina deste modo: redondo, interior, talvez complacente.

Todos os outros apresentam-nos os cenários possíveis onde quem os ocupa pode falhar ou refractar, de modo tão visual como inconclusivo ou impaciente.

A autora fala de aventuras mais reais que abstractas mas de um modo que deixa ao leitor a crítica a uma certa discrepância na exegese da história. As personagens mudam de rumo e de escala, de lugar, enfim, mudam de vida a seu bel-prazer, contrariando o que deles se esperaria, desafiando o classicismo hermenêutico. Sendo assim, não se espere destes treze contos o normal percurso da leitura. São textos que exigem do leitor os seus apurados sentidos crítico e de humor.

Aliás, a crítica ou auto-crítica e o humor ou auto-humor prevalecem no interior da narração truncada dos actos ou da descrição dos cenários, como se a escritora utilizasse, também aqui, a técnica da dramaturgia que tão bem conhece. A imagem como ponto de fuga é, em Luísa Costa Gomes, essencial. Atente-se os pequenos desenhos que, como complemento do índice, resumem as peripécias de cada uma das histórias.

Aliás é de teatro que trata a conversa no derradeiro texto. Um diálogo sonolento, sem fim, entre os percursos de um carteiro diligente com uma carta no bolso e de um Kierkegaard hesitante frente aos encontros fortuitos com a sua Regine Olsen.

Luísa Costa Gomes ou o modo de reencontrar a realidade pelo outro lado do espelho narrativo.

jef, outubro 2024