quinta-feira, 31 de julho de 2025

Sobre o livro «Um Dia na Vida de Abed Salama – Anatomia de uma tragédia em Jerusalém» de Nathan Thrall, Zigurate, (2023). Tradução de Sara Veiga.



 







Quando chegamos ao final deste melodrama trágico, tão próximo do naturalismo pós-romântico, quase operático, de séculos atrás, temos uma nota do autor esclarecendo que a história que acabámos de ler é “um trabalho de não-ficção onde todos os nomes são reais excepto o nome próprio de três pessoas”. O autor é um jornalista americano de origem judaica a viver em Jerusalém, onde o drama se passou em 2012, num dia de chuva e numa estrada em mau estado de conservação que separa palestinianos e israelitas. As aldeias de Anata e Anatot estão isoladas pelo temor mas unidas pela distância de uma estrada breve.

O autor consegue transmitir os insolventes contornos históricos de um conflito com muros a crescer entre bairros segregados, postos de controlo, cartões coloridos e discriminatórios, colonatos a ocupar sistematicamente a terra de povos sem conciliação, obrigados ao nomadismo, num processo social próximo do tribalismo familiar ou de clã. A construção de colonatos, a chegada dos colonos, os acordos de Oslo, as duas intifadas, os bombistas suicidas…

O ponto de partida é Abed Salama, o pai de Milad de cinco anos que anseia por uma viagem a um parque infantil. Depois, ao longo dos capítulos, numa leitura imparável, conhecemos a ligação de todas as outras personagens que se vão cruzando de modo familiar, social, político, de resistência, e, por fim, que se unem através da dor implacável.

Um romance-relato comoventíssimo que nos esclarece o incompreensível drama eterno circunscrito a uma terra ancestral, dia prometida, dita santa, berço de uma certa civilização mais ocidental.

Um romance-relato imprescidível.


jef, julho 2025

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Sobre o filme «A Uma Terra Desconhecida» de Mahdi Fleifel, 2024



 

















Leio «Um Dia na Vida de Abed Salama» (Nathan Thrall, Zigurate 2023). Recordo o filme «O Paraíso, Agora!» (Hany Abu-Assad, 2005). Não encontro explicação, digamos lógica, enfim para não ofender, para tanto ódio, tanta devastação, tamanha ‘perseguição-fuga’. Tudo em redor do berço da civilização mais ocidental, tudo em nome de uma terra dita santa.

Dois primos refugiados palestinianos, Chatila (Mahmoud Bakri) e Reda (Aram Sabbah), vêem-se enclausurados na miséria de Atenas, após terem sido ludibriados pelos passadores que tinham contratado por muito preço para os levarem até a Alemanha. Pelo meio, encontram um miúdo palestiniano, Malik (Mohammad Alsurafa), e tentam ajudá-lo a chegar a Itália onde se encontra a tia (Manal Awad). Pelo meio, Chatila trava conhecimento com uma rapariga grega, Tatiana (Angeliki Papoulia). Pelo meio, ainda encontram um traficante-poeta Abu Love (Mouataz Alshaltouh) que Chatila tenta afastar do primo por motivos óbvios mas a quem no final terá de reclamar auxílio. De refugiados ludibriados, Chatila e Reda tentam ser passadores fraudulentos.

Num ansioso modelo de filme policial sem policias, muito mais filme de máfia, mas com máfias pouco italianas, tudo parece suceder a um ritmo cada vez mais rápido, apontando para um fim que parece inevitável.

Após o autocarro passar um longo túnel, as duas figuras criadas pelos actores Mahmoud Bakri e Aram Sabbah surgem num plano quase suspenso de indefinição e angústia. Os dois jovens adultos, aqui quase mais crianças e indefesos, ingénuos e crédulos, que a criança que acabaram por ajudar. É essa igual suspensão de personalidade, fustigada por um lado pela necessidade e, por outro, pela bondade do coração que concede aos personagens o seu maior crédito de fotogenia cinéfila. Actores de primeiríssima água.

Outra figura importante na mestria dramática é dada pela actriz Angeliki Papoulia, Tatiana, que parece fazer parar o tempo sempre que entra em cena. Outro nome a fixar.

Um outro dos pormenores que pode ficar escondido na angústia do ritmo narrativo é o da fotografia e enquadramentos de Thodoros Mihopoulos que são de um apuro quase renascentista.

Um filme importante para ver no cinema durante os tenebrosos dias que hoje assistimos. A bem da humanidade que existe ainda.


jef, julho 2025

«A Uma Terra Desconhecida» (To a Land Unknown) de Mahdi Fleifel. Com Mahmood Bakri, Aram Sabbah, Angeliki Papoulia, Mohammad Alsurafa, Manal Awad, Munther Reyahneh, Mohammad Ghassan, Mouataz Alshaltouh, Mohammad Alsurafa. Argumento: Mahdi Fleifel, Fyzal Boulifa, Jason McColgan. Produção: Geoff Arbourne, Mahdi Fleifel. Fotografia: Thodoros Mihopoulos. Música: Nadah El Shazly. Guarda-roupa: Konstantina Mardiki. Grã-Bretanha / França / Grécia / Palestina, 2024, Cores, 106 min.

 

 

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Sobre o disco «Serpentine Prison» de Matt Berninger, 2020, Concord / Caroline Int. / Book Records


















Esqueçam os The National.

Em «Serpentine Prison», Matt Berninger afasta-se temperamental e emocionalmente da sua banda e junta-se a um mundo, talvez perdido, do melhor “american (canadian) folk song book”. De Neil Young («Harvest» 1972, «Harvest Moon»1992), Bruce Springteen («Nebraska» 1982) ou Cowboy Junkies («The Trinity Session» 1988) a Lamchop («How I Quit Smoking» 1996), Feist («Let It Die» 2004) ou Willi Carlisle («Critterland» 2024)… Isto é a minha memória, claro, a falhar.

My eyes are t-shirts, they’re so easy to read

I wear 'em for you but they're all about me

They always say “I want you to take me home”

They always say “I want you to leave me alone”

Canta Matt Berninger na primeira faixa e logo me surge a magnífica sequela que Peter Bogdanovich realizou dezasseis anos depois de «A Última Sessão» (1971) – «Texasville» (1987).  Neste, um pouco enervado, Jeff Bridges (Duane Jackson) questiona Cybill Shepherd (Jacy Farrow) por que razão ela há décadas não usa uma t-shirt que não se leia.

Todo o disco parece vir de um mundo poético, puro, clarividente, triste, aguerrido e suave ao mesmo tempo, que tinha a balada por princípio fraterno e político. Um mundo que nos faz cada vez mais falta. Por isso, Matt Berninger (e os The National) continua a existir e a resistir para nós e por nós.

Na última faixa, ele coloca uma espécie de ladainha-refrão que bem representa o disco. Essa sociedade-esgoto que nos aprisiona numa falsa liberdade-democracia, esse labirinto sem saída fácil que é a tristeza depressiva que nos arrasta por um túnel de luz difícil de descortinar no final.

Total submission

I’ve seen a vision

Everyone’s screamin’

I’ve been daydreamin’

Sorry I’m fishin’

Without permission

Tell her I miss her

In a serpentine prison

Total frustration

Deterioration

Nationalism

Another moon mission

Total submission

I've seen a vision

Call electrician

Serpentine prison

Whatever it is

I try not to listen

Cold cynicism

And blind nihilism

I need a vacation

From intoxication

Tell her I miss her

In a serpentine prison

 

As melodias e as letras são do próprio. Os arranjos são de Booker T Jones (teclas) e Sean O’Brien (guitarra acústica e lapsteel). A capa é desenhada sobre a arte de Michael Carson.


jef, julho 2025


terça-feira, 22 de julho de 2025

Sobre o filme «Mulheres da Noite» de Kinuyo Tanaka, 1961

 

















 


Relembro «Rua da Vergonha» de Kenji Mizoguchi (1956). A época em que o Japão proibiu a prostituição e foram abertas instituições para reeducação e integração das mulheres. No centro está a história de Kuniko Sugimoto (Chisako Hara) que será perseguida e condenada socialmente pelo estigma da sua condição. Apesar da benevolência da directora (Chikage Awashima) e da solidariedade entre as restantes mulheres do centro.

A devoção, quase militância, de Kinuyo Tanaka pelo feminino nota-se na subtiliza dos enquadramentos, na compreensão da estrutura e natureza femininas, na tónica dramática da rejeição imediata da sociedade ou da resistência da tradição ancestral nipónica, também na amabilidade com rodeia Kuniko na sua luta pela integração. Sobretudo na tensão subtil e teatral colocada nas cenas de agressividade e violência. A realizadora ama as mulheres, social e esteticamente e a tonalidade do filme é de uma beleza requintada mesmo nas situações mais inóspitas.

Uma preciosidade.

 

jef, julho 2025

«Mulheres da Noite» (Onna bakari no yoru /Girls of the Night) de Kinuyo Tanaka. Com Chisako Hara, Akemi Kita, Kyoko Kagawa, Chikage Awashima, Yosuke Natsuki, Chieko Nakakita, Kokinji Katsura, Chieko Naniwa, Sadako Sawamura. Argumento: Sumie Tanaka segundo o romace de Masako Yana «Michi aredo» (1960). Produção: Ichiro Nagashima, Hideyuki Shiino. Fotografia: Asakazu Nakai. Música: Hikaru Hayashi. Japão, 1961, P/B, 89 min.


domingo, 20 de julho de 2025

Sobre o filme «Verdades Difíceis» de Mike Leigh, 2025



 











E se víssemos este filme como uma impossível comédia negra? Uma comédia confrangedora onde todos representam o papel real que a sociedade, a família ou a casa lhes concedem, mas na qual a representação é exagerada, sublinhada, retocada, silenciada, como no supremo teatro clássico, grego shakespeariano, vicentino. Um exagero que apenas transforma a realidade para que nós não a subestimemos. Para que nós a compreendamos. Quantas vezes reprimimos o riso perante a atitude caricata de um doente grave? Sorrimos mesmo frente à crueza de uma verdade difícil. Claro, depois, evidentemente, sentimos o peso da culpa e do remorso. A função do teatro é essa. Assim é o cinema de Mike Leigh.

Em «Verdades Difíceis» somos confrontados com a realidade da doença familiar incorporada (novamente) pela actriz Marianne Jean-Baptiste (Pansy). Alguém que terá sido espoliada da sua juventude e, por essa razão, culpa sistematicamente o mundo inteiro, fazendo-o sofrer com a sua própria pena. Toda a vida de Pansy é suportada pelo maior cansaço depressivo que deve carregar até à exaustão física e psicológica. Neste filme, o contraste fulminante e psiquiátrico é dado por Pansy em todo o lado: contra a sua casa, contra a alegria da casa da irmã Chantelle (Michele Austin); na aceitação passiva e contrariada do marido Curtley (David Webber) ou no do filho, ainda mais obsessivamente passivo Moses (Tuwaine Barrett); no supermercado; na loja de sofás; no parque de estacionamento… No cemitério, frente à campa da mãe.

Em «Verdades Difíceis», a palavra “cuspida” é tão essencial quanto a palavra por dizer, o olhar calado ou mesmo o espaço de tempo entre cada uma das frases. O cinema inglês é assim. Aprendi eu com «Breve Encontro» (David Lean, 1945), onde o silêncio é emocionado pelo concerto de Rachmaninov. Em «Verdades Difíceis» esta tarefa é dada pela música de Gary Yershon. Uma música que enegrece o ecrã após as verdadeiramente brutais cenas finais. O pavor de Pansy, a lágrima de Curtley.


jef, julho 2025

«Verdades Difíceis» (Hard Truths) de Mike Leigh. Com Marianne Jean-Baptiste, Michele Austin, David Webber, Tuwaine Barrett, Ani Nelson, Sophia Brown, Jonathan Livingstone, Jo Martin, Llewella Gideon, Yvette Boakye, Chinenye Ezeudu, Diana Yekinni, Ashna Rabheru, Syrus Lowe, Samantha Spiro. Argumento: Mike Leigh. Produção: Georgina Lowe. Fotografia: Dick Pope. Música: Gary Yershon. Guarda-roupa: Jacqueline Durran. Grâ-Bretanha / Espanha, 2024, Cores, 97 min.

sábado, 19 de julho de 2025

Sobre o livro «A Palavra que Resta» de Stênio Gardel, Dom Quixote, 2024



 







Para acabar de vez com o conceito redutor, ou classificação preconceituosa, de livro “queer”.

Estamos perante uma quase-novela onde o amor inevitável, interrompido e truncado entre Raimundo Gaudêncio e Cícero se encontra contido numa carta que ficará por ser lida durante décadas. De um romance sobre como o amor iniciático e pós-adolescente entre dois rapazes, encerrado no sertão profundo, se transforma num longo percurso-poema sobre as várias camadas que o preconceito e o medo podem conter; como esse preconceito, a ignorância e o medo congénitos podem ditar a violência e a profunda infelicidade dos seres. Sobre, ainda, a necessidade premente da palavra dita oralmente e da urgência da aprendizagem na direcção da leitura da palavra escrita, escondida, ansiada.

Como em «Carta de Uma Desconhecida» de Stefan Zweig (1922), «A Palavra que Resta» usa a expressão romântica extrema, neste caso de índole rural e oral (lembrando por vezes a cadência ritmada de Saramago), onde é a leitura adiada que dá o mote para que o leitor siga atrás da história, levado pelo inexorável atraso de décadas de auto-repressão e desejo escondido.

Um romance-novela que tem por centro o longo capítulo “Estrada” que nos indica o percurso a que o protagonista deverá regressar de modo desejado e simultaneamente recusado, como sempre acontece no caminho que se faz de volta ao passado. E, já no final, em outro mais longo capítulo, “Casa” contém o regresso final consumado. Estrada e Casa, o eterno retorno de Raimundo Gaudêncio.  O mesmo desejo de voltar à palavra que devia ter sido dita e ouvida junto a uma cruz na margem do rio, muito tempo antes, a recusa de sofrer a ausência que o preconceito impôs de modo tão violento para toda a vida.

Assim, aqui fica registado somente o amor inicial, carnal e fraterno entre dois corpos unidos desunidos que descobrem que também eles foram construídos na base da pulsão ditada pelas duas respectivas almas.


jef, julho 2025

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Sobre o livro «O Clube do Crime das Quintas-Feiras» de Richard Osman, Planeta, 2021. Tradução de Rui Azeredo.


Existirá um padrão para o humor criativo britânico? Poderemos conceber um modo de “livro policial”?

Após ler este, surge-me um definido “sim” para o primeira e um “não” tímido para a segunda questão.

Mesmo que Richard Osman venha do humor televisivo inglês existe aqui um modo específico de lidar com a terceira idade e as suas permanentes características ou condicionantes físicas, mentais, neurológicas. A jovialidade que ele dá a este grupo amador de investigação criminal vem precisamente de os colocar sob a batuta do “humor-gag”, por vezes sem sentido aparente, que nós temos o hábito de associar ao referido “humor-britânico” – Ron, um ex-aguerrido-sindicalista que lutara pelas condições do trabalho operário, pai do ex-pugilista Jason; Ibrahim que fora psiquiatra de renome; Elizabeth ex-investigadora policial, casada com Stephen, um velho ausente, exímio jogador de xadrez, Elizabeth que tinha sido colega e camarada de Penny (agora em coma, agora sua confidente passiva), esta última casada com o paciente enamorado John. Por fim, Joyce, ex-enfermeira e viúva de Gerry, mãe da arredia filha, a contabilista Joanna. Joyce que apoia emocionalmente Bernard, viúvo de Asima, guardião de um banco de jardim.

O livro é escrito em pequenos capítulos numerados e com narrativa alternada. Uma terça parte está identificada com o nome de Joyce pois são excertos do respectivo diário. A segunda parte é dirigida pelo vaivém das deambulações de Elizabeth, asinha na sua perspicaz correria, enquanto o último terço descreve o trabalho da investigadora Donna De Freitas que trabalha na polícia sob as ordens do inspector-chefe Chris Hudson, dedicado trabalhador, mais dedicado do que gostaria pois fá-lo também para esconder uma determinada frustração afectiva, familiar e até física. Aqui, na descrição de um homem solitário, depressivo e desmazelado, sugere-se a resposta para a segunda questão colocada lá atrás. Sim, Richard Osman concilia a estrutura emocional do investigador policial americano, pos-Marlowe, condensando-o na figura de Chris Hudson, pondo-o, no entanto, em confronto com as figuras dos quatro velhos amigos mais velhos, que lembrarão a divertida sobriedade aristocrática de Marple ou a empatia socio-psicológica de Maigret.

Pelo meio, existe um, dois, três, quatro, talvez cinco mortos espalhados e mais alguns supostos assassinos que poderão escapar por entre as malhas judiciais da sorte oficial ou, por outro lado, serem apanhados (e desculpados) pelo mais criativo grupo privado de investigação criminal. Todos instalados no centro residencial para velhos em Kent, Coopers Chase, instalado em cinco hectares de terreno arborizado com direito a antigo convento, igreja e a cemitério.

Naturalmente, devemos esquecer todas as extraordinárias coincidências (talvez demasiadas) que se encontram em cinco hectares e arredores ou no facto de todos, afinal, possuírem uma ligação mais ou menos forte com o evento, familiar ou geograficamente, Isso talvez pouco importe, pois Richard Osman tem um modo muito divertido de nos emocionar, até, talvez, a uma lágrima, ao transferir o carinho da escrita para todos aqueles seres que aguardam com paciência e alguma energia a chegada do luto. Aliás, o melhor do livro.

jef, julho 2025

 


terça-feira, 15 de julho de 2025

NOS Alive 2025 - menu do dia









NOS Alive 2025

Passeio Marítimo de Algés

12 de Julho


Palco Heineken

Líquen 17h00

Constança Ochoa (voz, poesia), Rui Jorge Lopes, Leonardo Patrício (teclas e programação) e Luís Pedro Keating


Dead Poet Society 17h50

Jack Underkofler (voz e guitarra), Jack Collins (guitarra), Dylan Brenner (baixo) e Will Goodroad (percussão)


(Intervalo)

gov.pt – chave móvel actualizada


Bright Eyes 19h00

Conor Oberst (compositor e guitarra), Mike Mogis (multi-instrumentalista e produtor) e  Nate Walcott (compositor, arranjos, trompete e piano)


Future Islands 01h15

Samuel T. Herring (letras e voz), Gerrit Welmers (teclas e programação), William Cashion (baixo, guitarra eléctrica e acústica) e Michael Lowry (percussão)


Palco Coreto

Luís Severo (guitarra e voz) 18h35


Palco NOS

Muse 21h15

Matthew Bellamy (composição, voz, guitarra e piano), Christopher Wolstenholme (baixo, voz e teclas) e Dominic Howard (bateria e percussão)

 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Sobre o filme «A Lua Ascendeu» de Kinuyo Tanaka, 1955



 




















Uma comédia bucólica. Uma pastoral nostálgica. Ou como Kinuyo Tanaka transforma o universo familiar, denso, “interior de portas”, teatral e nostálgico de Yasujiro Ozu numa paisagem extrema, em plena paisagem. Afinal, Ozu é um dos argumentistas, talvez mentor. Um argumento muito fino que praticamente modela a própria comédia, toldando-lhe os contornos de recomeço com a névoa sumptuosa do fim inexorável. A cena final (e a presença do inesquecível Chishu Ryu interpretando o benévolo pai, uma das outras almas de Ozu) assim dita o tema maior do realizador.

Contudo, existe uma alegria sem fim na fotografia, na luz e contraluz, nas sombras da floresta, da casa, do templo, no conluio feliz que a filha mais nova, Setsuko (Mie Kitahara), prepara com o seu proto-namorado, amigo da família, Yasui (Shoji Yasui), tentando a reaproximação da sua irmã Ayako (Yoko Sugi) a um velho conhecido seu e antigo colega de Yasui, Amamiya (Ko Mishima). Uma artimanha que necessita permanentemente da cumplicidade da criada Yoneya, a própria Kinuyo Tanaka. Tudo tem de ser meticulosamente calculado para que a lua ascenda, o luar seja magnífico e o amor, abençoado. Aqui espreita a alma de Shakespeare.

Existe uma promessa de felicidade, mas ela está sempre velada pelo espectro da guerra finda, do desemprego, também da tradição familiar.

Um filme muito belo onde a poesia codifica realmente o desenlace da intriga, envolvendo com secreto entusiasmo toda a família.

Um filme que é a definição do próprio código poético.

 

jef, julho 2025

«A Lua Ascendeu» (Tsuki wa noborinu / The Moon Has Risen) de Kinuyo Tanaka. Com Chishu Ryu, Shuji Sano, Hisako Yamane, Yoko Sugi, Mie Kitahara, Ko Mishima, Shoji Yasui, Kinuyo Tanaka, Junji Masuda, Miki Odagiri, Hiroshi Shiomi. Argumento: Yasujiro Ozu, Ryosuke Saito. Produção: Eisei Koi. Fotografia: Shigeyoshi Mine. Música: Takanobu Saitô. Japão, 1955, P/B, 99 min.

domingo, 6 de julho de 2025

Sobre o disco «More.» de Pulp, 2025, Rough Trade


 

Devo dizer que na segunda metade dos anos 90 do século que passou, os meus ouvidos foram educados de modo sistemático pela hard-pop de «Different Class» dos Pulp (Island, 1995) e pela pop-sinfónica dos The Divine Comedy «Casanova» (Setanta, 1996). Quase um vício.

Trinta anos depois, Jarvis Cocker e a sua trupe de pop-rock circense aparece para negar tudo o que dizia em “Common People”, “Underwear” ou “Disco 2000”. Nega-o mas afirma tudo de novo. Afinal, podemos agora ouvi-lo cantar em “Got to Have Love”:

“Without love you’re just making a fool of yourself

 Without love  you’re just jerking off inside someone else”

Afinal, ainda podemos ter esperança. Podemos voltar a ser crianças em busca de sermos adultos e adultos a exigir ‘demência infantil’, esquecer as fábricas que fecham, esquecer essa coisa de crescermos em torno da puberdade e acender as velas de todos os aniversários ao mesmo tempo. Jarvis Cocker canta que ainda vamos a tempo de esquecer tudo, relembrar tudo e seguir em frente e ainda por cima, sorrir.

30 anos depois «More.» parece não se esquecer de que sou fã (incondicional) do veneziano «Casanova» dos Divine Comedy, regressando para minha memória com uma ópera ultra-pop orquestral, sinfónica, coral. Dançável e reflectida, entre Burt Bacharach e Angelo Badalamenti, a lembrar a canção falada de Leonard Cohen, a infalível dança coral de David Byrne, a história sem fim de Ziggy Stardust…

Enfim, será que gostamos porque algum dia já gostámos. Talvez seja o crédito ou o defeito da memória de longo termo… Pouco me importa, ouço «More.» com o entusiasmo de hoje sem beliscar o papel de parede da pop britânica de há três décadas atrás. E é óptimo.


jef, julho 2025

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Sobre o filme «A Vida Luminosa» de João Rosas, 2025



 






























Reconhecer Lisboa pelos passos que o cinema nos concede. Reais e falsos ao mesmo tempo. Tão banais e quotidianos quanto literários. A vida é assim: melancolicamente luminosa.

A primeira longa metragem de João Rosas é uma espécie de achado. E não resisto a confessar, meio envergonhado, que a frase me surgiu ao ver o filme começar com o coro da Casa da Achada a cantar em polifonia “a única certeza que temos é a consabida e permanente dúvida”. Um arco longo onde a câmara vai mostrando cada cantor até se fixar em Nicolau (Francisco Melo). Todo o filme se desenvolve como esta cena, parcimonioso mas convicto, mostrando cada rua da cidade como habitat ou residência de um grupo de jovens que circulam contidos como as moléculas num frasco de gás que se deixou em repouso. As dúvidas, os receios, os temores e os leves dramas são como uma sugestão de uma irónica visão do futuro. Tudo pode correr mal mas o final do dia pode sempre trazer uma molécula de esperança.

Nicolau faz 24 anos mas não comemora. Vive na ressaca do abandono da namorada que partiu para um longínquo retiro espiritual, Nicolau aguarda qualquer coisa até a sua bicicleta avariar, até sair de casa dos pais para um quarto alugado, até aceitar um emprego numa livraria de bairro onde um personagem cliente-residente, o próprio realizador João Rosas, é convidado a abandonar os filmes para se dedicar à literatura, coisa para a qual terá bastante  mais talento. Quem o diz é alguém que esclarece o paradigma nefasto do capitalismo. Nicolau faz publicidade à livraria na rua vestido de Pai Natal, em plena Primavera. Na Cinemateca, entre a égide de Joseph Von Stroheim ou Robert Bresson, ele senta-se ao lado de uma réplica da antiga namorada. Mas é com Chloé (Cécile Matignon) que ele reencontra o espaço erigido para encerrar os mortos e o tempo que para estes terminou. Nicolau passa a sonhar com cemitérios.

Em entrevista, João Rosas cita todos aqueles cineastas que fazem filmes a partir de nada, a partir dessa existência que tem tanto de comédia como de nostálgica finitude. A vida, afinal, quando damos por ela, olha, já lá vai. Inevitável é citar as comédias e provérbios de Éric Rohmer, o país nova-iorquino de Woody Allen, o círculo eternamente político e palavroso de Nanni Moretti, a cidade castelhana onde nada acontece de Fernando Trueba, os monótonos dias seguintes e teatrais do sul-coreano Hong Sang-soo. Afinal, a vida é igual em todo o planeta. Todos eles (João Rosas incluído) fazem aquela proeza de nos levar atrás de coisa aparentemente nenhuma e, por fim, quando termina o filme, dizem: estão a ver, eu não vos disse, afinal a felicidade é tão honesta e comum como a infelicidade ou a depressão, vale a pena filmá-la.

Vale a pena também vivê-la, apesar de, na sua grande parte, não lhe encontrarmos grande drama ou paixão substancial.

Apesar de tudo haverá sempre tempo para o cinema e para a literatura.


jef, junho 2025

«A Vida Luminosa» de João Rosas. Com Francisco Melo, Cécile Matignon, Margarida Dias, Federica Balbi, Gemma Tria, Ângela Ramos, Francisca Alarcão. Argumento: João Rosas. Produção: Pedro Borges, Midas Filmes. Fotografia: Paulo Menezes. Som Olivier Blanc. Guarda-roupa: Susana Moura. Portugal / França, 2025, Cores, 106 min.