As câmaras de vigilância do museu não podiam registar os meus
actos porque os meus actos dependiam dos meus pensamentos. Fossem eles quais
fossem. E, até ver, tais impulsos electro-magnéticos ainda não podiam ser
registados pelas maquinetas de aspecto vetusto que me olhavam de esguelha, do
tecto. Em segundo lugar, os meus pensamentos permaneciam secretos, não os
revelara a ninguém. Ninguém estava a meu lado e eu queria assim. As pinturas
não se vêem a dois ou a três, ou a uma multidão. Apenas a um e, mesmo assim,
quantas vezes, torna-se complicado porque, um em cada um, seremos vários. Como
o outro diria. Finalmente, não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar, neste mundo, o
momento raro em que nos deixam estar a sós.
E mesmo que me culpe de ser vários, eu gosto de contemplar
uma obra de arte com o meu tempo. Longe do tempo alheio.
Contemplar sozinho uma natureza morta.
«Bodegón con un perro y un gato». Jan Fyt. Vindo das artes da
Flandres para o Prado e deste até Lisboa. Um século XVII de naturalismo
extemporâneo, decadente e presunçoso, atravancado de barroco, cheio de bichos a
fino recorte e cores vivas, apesar de mortos. Balas frias, pescoços degolados. Algum deus a espreitar. Hiper-realismo extravagante a lembrar um qualquer
pré-expressionismo. Um absurdo quase nojento, por surrealista!
Enfim, esquizofrenia crítica. Isto deixa qualquer um uma
pilha de nervos! Até dá ganas…
Por que não pego eu no canivete disfarçado de caneta que
sempre trago no fundo do bolso (não vá a fome apertar e ansiar por uma maçã) e esfaqueio a Natureza Morta que se apresenta na minha frente?
Still Life. Ainda.
E, ainda por cima, estamos a sós comigos mesmos.
Ou talvez não.
Afinal, não estarei realmente a sós com os meus eventuais eus e os arbítrios pouco livres. No corredor de acesso, um moço, de farda Securitas,
costas direitas e nome na lapela, está bastante adormecido mas suficientemente
vigilante.
Não o farei para já. Aguardo. Há tempo de sobra. Um tédio pequeno.
Contudo, este pensamento não registado pelas câmaras de
vigilância deu-me uma fome súbita e danada.
«Por favor, pode indicar-me o caminho mais rápido para a
entrada? Preciso de ir deixar rapidamente no bengaleiro este canivete… e a
minha dupla consciência.
Já agora, a cafetaria está aberta?»
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