terça-feira, 2 de maio de 2017

Sobre o filme «A Mulher de Quem se Fala» de Kenji Mizoguchi


















Diz João Bénard da Costa, nas Folhas da Cinemateca, que este é o menos amado dos seus últimos filmes. Esclareçamos, o menos apaixonadamente amado das suas derradeiras obras-primas. Mizoguchi achou-o um compasso de espera, embirrou com os argumentistas, desabafou «que era uma merda de história, sem interesse. Uma história de putas.» Os Cahiers du Cinema escreveram, em 1958: «Nove, dos quais oito são obras-primas».
Porém…o filme é magnífico.
Uma mistura singularíssima de desencontros e clivagens, desconfortos e pormenores, recantos de argumento, planos e falas, muito difícil de realizar, facílimo de venerar. Repito, este filme é magnífico.
Dizem que George Cukor ou Pedro Almodovar, cada qual a seu modo, se dedicam a construir a personagem “feminina”. Mas Mizoguchi, na maior parte da filmografia, ultrapassa-os a uma velocidade sem par. Em «A Mulher de Quem se Fala», de um modo particular.
Yukiko (Yoshiko Kuga) regressada de Tóquio, ausente e deprimida mas extremamente moderna, quase sempre de negro e vestida à ocidental, movendo-se elegante como Audrey Hepburn, tem como contraponto a sua empreendedora mãe, Hatsuko (Kinuyo Tanaka), que dirige a afamada e bem-sucedida casa de gueixas, segundo as regras ancestrais. As duas figuras tutelares reduzem a bonifrates todas as figuras masculinas. O moderno e ambicioso médico Kenzo (Tomoemon Otani) e o velho amigo Yasuichi (Eitarô Shindô), entre o lúbrico e o agiota, o único a envergar vestes orientais, aparecem quase risíveis, sem esqueleto interno, vogando ao sabor de uma vontade instantânea…, enquanto as mulheres vivem com  tempo e peso; trabalham, cuidam, amam, servem, sentem, responsabilizam-se.
Não conheço a cinematografia total de Mizoguchi mas este filme tem uma característica operática sublime, segundo a qual a cena dramática centrada numa comédia antiga que satiriza a paixão de uma mulher sexagenária vai despoletar toda a tragédia, opondo as duas figuras jovens às duas mais velhas, o Ocidente ao Oriente, a moral inovadora à moral tradicional conservadora, a liberdade à resignação.
Não é por acaso o magnífico genérico feito de figuras geométricas à la Mondrian, abstracto e imponderável. Também não o será a maravilhosa banda sonora de Toshirô Mayuzumi, a lembrar a suspensão ansiosa de Bernard Herrmann.
Tudo fica paralisado na cena final, em comunhão espiritual, quando as duas gueixas saem ao encontro dos clientes, mulheres maravilhosas, etéreas, irreais, sacrificadas e belas, em andas insustentáveis, dizendo à aprendiz que a sua profissão jamais terá fim. Atrás delas, novas gueixas virão.
Re-repito: o filme é magnífico!

jef, maio 2017

«A Mulher de Quem se Fala» (Uwasa No Onna) de Kenji Mizoguchi. Com Kinuyo Tanaka, Yoshiko Kuga, Tomoemon Otani, , Bontarô Miyake, Haruo Tanaka, Hisao Toake, Teruko Daimi, Teruko Kusugi, Chieko Naniwa, KimikoTachibana, Chuzaburô Shigeyama. Argumento: Yoda Yoshikata e Masashige Narusawa, a partir de uma história de Matsutaro Kawagushi, fotografia: Kazuo Miyagawa, música: Toshirô Mayuzumi, música Nô: Kurozaemon Katayama. Japão, 1954, P/B, 83 min.

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