«É de bom tamanho, nem largo, nem fundo É a parte que te cabe deste latifúndio Não é cova grande, é cova medida É a terra que querias ver dividida»
«Morte e Vida Severina» (João Cabral de Melo Neto,1955). Dez
anos depois, a peça dirigida Roberto
Freire para o Teatro da Universidade Católica de São Paulo, a música de Chico
Buarque. Também «Os Subterrâneos da Liberdade» (Jorge Amado, 1954). Trazem-me à
memória a luta pela liberdade do povo brasileiro.
«Torto Arado» traz igualmente à consciência a luta pela
liberdade dos descendentes dos negros escravos quilombolas que, mesmo após a
abolição da escravatura em 1888, permaneceram escravizados, presos à fazenda, com
trabalho, casa de barro e horta, obrigados ao periódico dízimo em género, mas sem
salário. As tradições passadas de boca em boca através dos tempos, como salvação
e alegria.
A fazenda de Água Negra. Três gerações. Donana, mãe de Zeca
Chapéu Grande, e as suas netas Bibiana e Belonísia. A mãe destas, Salustiana. Entre
todos eles, as festas de jarê e a convocação dos encantados e da cultura
animista africana. Nem a cova no cemitério da Viração está garantida. Ainda
Santa Rita Pescadeira que acaba por perder o corpo-cavalo que a incorpora nas espirituais brincadeiras mas que continua a tudo observar. Sobre todos, o brilho prateado do
gume de uma faca secretamente guardada e que conduzi a narrativa. A luta
pela manutenção das tradições não é menor do que a luta pela melhoria das
condições de vida, de trabalho, de educação. Mas é necessário fugir dali para
regressar com novas bagagens. Nova consciência de classe.
«Você sozinho consegue trabalhar esse
tarefa que a gente trabalha. Essa terra que cresce mato, que cresce a caatinga,
o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa
gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher.
Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a
terra é nada.»
Como é literariamente salutar, de um prazer imenso, ler-se
sobre uma História que desconhecíamos, sobre a dignidade de um povo sofredor,
sobre uma família resistente e lutadora, numa intriga socialmente empenhada,
através de um neo-realismo redesenhado, inventivo, também político, ecológico, comovedor.