domingo, 15 de dezembro de 2024

Sobre o livro «Torto Arado» de Itamar Vieira Júnior, Dom Quixote, 2023 (2018)



 

                                                 







   «É de bom tamanho, nem largo, nem fundo                                                            É a parte que te cabe deste latifúndio                                                                      Não é cova grande, é cova medida                                                                        É a terra que querias ver dividida»

 

«Morte e Vida Severina» (João Cabral de Melo Neto,1955). Dez anos depois, a peça  dirigida Roberto Freire para o Teatro da Universidade Católica de São Paulo, a música de Chico Buarque. Também «Os Subterrâneos da Liberdade» (Jorge Amado, 1954). Trazem-me à memória a luta pela liberdade do povo brasileiro.

«Torto Arado» traz igualmente à consciência a luta pela liberdade dos descendentes dos negros escravos quilombolas que, mesmo após a abolição da escravatura em 1888, permaneceram escravizados, presos à fazenda, com trabalho, casa de barro e horta, obrigados ao periódico dízimo em género, mas sem salário. As tradições passadas de boca em boca através dos tempos, como salvação e alegria.

A fazenda de Água Negra. Três gerações. Donana, mãe de Zeca Chapéu Grande, e as suas netas Bibiana e Belonísia. A mãe destas, Salustiana. Entre todos eles, as festas de jarê e a convocação dos encantados e da cultura animista africana. Nem a cova no cemitério da Viração está garantida. Ainda Santa Rita Pescadeira que acaba por perder o corpo-cavalo que a incorpora nas espirituais brincadeiras mas que continua a tudo observar. Sobre todos, o brilho prateado do gume de uma faca secretamente guardada e que conduzi a narrativa. A luta pela manutenção das tradições não é menor do que a luta pela melhoria das condições de vida, de trabalho, de educação. Mas é necessário fugir dali para regressar com novas bagagens. Nova consciência de classe.

«Você sozinho consegue trabalhar esse tarefa que a gente trabalha. Essa terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada.»

Como é literariamente salutar, de um prazer imenso, ler-se sobre uma História que desconhecíamos, sobre a dignidade de um povo sofredor, sobre uma família resistente e lutadora, numa intriga socialmente empenhada, através de um neo-realismo redesenhado, inventivo, também político, ecológico, comovedor.


 jef, dezembro 2024


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