segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Sobre a peça «O Senhor Paul», Teatro Aberto 2025



 

























Há anos que o Senhor Paul vive no seu sofá, bebendo o seu chá, devorando o seu esparguete, quantas vezes frio por não o aquecer na placa eléctrica que se encontra por cima do piano mecânico. O Senhor Paul e a sua irmã, Luise, amante de Ópera, vivem nas traseiras do prédio onde outrora habitavam e de onde foram expulsos pelo velho proprietário, voz de falsete, avô do actual dono, Helm, que agora conseguiu financiador para transformar o espaço, uma antiga fábrica de sabão, numa moderna lavandaria. Para isso, Helm precisa de uma simples assinatura do Senhor Paul.

Só que o Senhor Paul vive bem no seu sofá, no seu roupão de seda e com as suas pantufas, convivendo em alegre, quase pueril, quase licenciosa amizade com uma quase criança, a vizinha Anita, que junto dele se refugia e se diverte. Nada mais lhe interessa. Nem a propriedade, nem o futuro da cidade, da economia e do resto do mundo. E como o Senhor Paul a tudo abdicou, nada, deste modo, lhe pode ser retirado.

O Senhor Paul, na sua atitude de obsessiva e sistemática rejeição torna-se um novo “Bartleby”, a sintomática enigmática personagem criada por Melville que também a tudo dizia com convicta benevolência “Preferia não o fazer!” (I would prefer not to, na tradução de Gil de Carvalho para a Assírio & Alvim).

Só que Tankred Dorst escreveu esta peça em 1993, numa Alemanha reconstruída e em busca de uma nova identidade social e económica, talvez furturista, certamente também injusta. Hoje podemos assumir a negação do Senhor Paul, na sua alegre sobrevivência contra tudo e contra todos, como uma parábola existencialista de resistência contra o capitalismo actual, ainda mais desalvorado, ainda mais cruel, mais autofágico.

Nesta alta comédia quase negra, Miguel Loureiro é o impante, inteligente, desesperante e inamovível vencedor, com estilo e crédito aristocráticos.

Álvaro Correia usa a sua estratégia quase “isabelina” das várias escadas, vários níveis, quase palcos, para nos garantir a exiguidade de um espaço, ora constrangedor, desarrumado, claustrofóbico, ora inóspito e desabrigado, dentro de um gigantesco e desértico bastidor por onde as figuras se somem e sempre reaparecem, numa gestão cénica seguramente eficaz e bela.

Viva o novo teatro de intervenção!


jef, 12 de Outubro de 2025

 

«O Senhor Paul» de Tankred Dorst com Ursula Ehler. Com Miguel Loureiro (Senhor Paul) Carlos Malvarez (Senhor Schwarzbeck, o investidor), Íris Cañamero (Anita), José Pimentão (Helm, o herdeiro), Lia Carvalho (Lilo Schöps, a namorada), Maria José Paschoal (Luise, a irmã). Tradução: Vera San Payo de Lemos. Encenação: Álvaro Correia. Cenário: André Guedes. Figurinos: Marisa Fernandes. Desenho de Luz: Manuel Abrantes. Sonoplastia: Vitória. Teatro Aberto. Duração: 1h40.

Fotografias: Filipe Figueiredo.