Há anos que o Senhor Paul vive no seu sofá, bebendo o seu
chá, devorando o seu esparguete, quantas vezes frio por não o aquecer na placa eléctrica que se encontra por cima do piano mecânico. O Senhor Paul e a sua irmã, Luise, amante
de Ópera, vivem nas traseiras do prédio onde outrora habitavam e de onde foram
expulsos pelo velho proprietário, voz de falsete, avô do actual dono, Helm, que agora conseguiu financiador para transformar o espaço, uma antiga fábrica de sabão,
numa moderna lavandaria. Para isso, Helm precisa de uma simples assinatura do
Senhor Paul.
Só que o Senhor Paul vive bem no seu sofá, no seu roupão de
seda e com as suas pantufas, convivendo em alegre, quase pueril, quase
licenciosa amizade com uma quase criança, a vizinha Anita, que junto dele se refugia e se
diverte. Nada mais lhe interessa. Nem a propriedade, nem o futuro da cidade, da
economia e do resto do mundo. E como o Senhor Paul a tudo abdicou, nada, deste
modo, lhe pode ser retirado.
O Senhor Paul, na sua atitude de obsessiva e sistemática rejeição
torna-se um novo “Bartleby”, a sintomática enigmática personagem criada por
Melville que também a tudo dizia com convicta benevolência “Preferia não o
fazer!” (I would prefer not to, na
tradução de Gil de Carvalho para a Assírio & Alvim).
Só que Tankred Dorst escreveu esta peça em 1993, numa Alemanha
reconstruída e em busca de uma nova identidade social e económica, talvez
furturista, certamente também injusta. Hoje podemos assumir a negação do Senhor
Paul, na sua alegre sobrevivência contra tudo e contra todos, como uma parábola
existencialista de resistência contra o capitalismo actual, ainda mais desalvorado,
ainda mais cruel, mais autofágico.
Nesta alta comédia quase negra, Miguel Loureiro é o impante,
inteligente, desesperante e inamovível vencedor, com estilo e crédito
aristocráticos.
Álvaro Correia usa a sua estratégia quase “isabelina” das várias
escadas, vários níveis, quase palcos, para nos garantir a exiguidade de um espaço,
ora constrangedor, desarrumado, claustrofóbico, ora inóspito e desabrigado, dentro
de um gigantesco e desértico bastidor por onde as figuras se somem e sempre reaparecem,
numa gestão cénica seguramente eficaz e bela.
Viva o novo teatro de intervenção!
jef, 12 de Outubro de 2025
«O Senhor Paul» de Tankred Dorst com Ursula Ehler. Com Miguel
Loureiro (Senhor Paul) Carlos Malvarez (Senhor Schwarzbeck, o investidor), Íris
Cañamero (Anita), José Pimentão (Helm, o herdeiro), Lia Carvalho (Lilo Schöps,
a namorada), Maria José Paschoal (Luise, a irmã). Tradução: Vera San Payo de
Lemos. Encenação: Álvaro
Correia. Cenário: André Guedes. Figurinos: Marisa Fernandes. Desenho de Luz:
Manuel Abrantes. Sonoplastia: Vitória. Teatro Aberto. Duração: 1h40.
Fotografias: Filipe Figueiredo.