terça-feira, 14 de outubro de 2025

Sobre o livro «A Vida Modo de Usar» de Georges Perec, Editorial Presença, 1989 (1969-1978). Tradução de Pedro Tamen.



 







Um labirinto consignado no interior de um mundo infinito. Um mundo infinito consentido dentro de um labirinto desvendado. Através de uma tradução árdua e magnífica de Pedro Tamen, eis o romance que George Perec edificou durante nove anos. E como ele imaginou, a fachada de um prédio a ser removida e todas as histórias ali contidas a poderem, finalmente, ser contadas em simultâneo.

Referimo-nos ao número 11 da imaginária rua de Simon-Crubellier situada no 17.º bairro de Paris. Tem mais de oito pisos, incluindo caves, corredores, escadas, esconsos, caixa de elevador, lojas e mansardas. 99 capítulos divididos por 6 partes (e um epílogo), com um mapa anexo para localizar os novos e os velhos inquilinos, um substancial índice remissivo de 50 páginas para situar as referências citadas por mais casuísticas que pareçam ao leitor desatento (e é preciso muita atenção!), uma tabela cronológica 1833-1975, um índice da maior parte das histórias (mais de 100) contadas nas perto de 450 densas páginas deste exaustivo Compêndio de História Comportamental de uma Cidade e do Mundo que a envolve.

Todo o livro é descrito como se um fotógrafo forense analisasse o local dos acontecimentos onde as personagens parecem ficar paradas no tempo, cristalizadas como num álbum de fotografia. Inicialmente, ali tudo tem de ser descrito ao mais ínfimo pormenor, pois é no pormenor que pode esconder-se a solução. A cor do sapato, o estado da manta, a história retratada numa pintura. Depois, todas as personagens começam a mover-se e a sua história vai sendo contada por episódios, desde o nascimento do edifício em 1833 até a um certo Verão que quase o faz tornar-se num deserto. Estamos no dia vinte e três de Junho de mil novecentos e setenta e cinco e as oito horas da noite aproximam-se.

E por mais personagens que se multiplicam ao longo daquele frontispício, existe uma certa competição velada, um negócio fechado, um jogo escondido, infinito por irrealizável. Numa espécie de centro descentrado, está um britânico, riquíssimo e fleumático, Bartlebooth que resolve pintar 500 aguarelas junto ao mar. Para isso, tem de contratar Valène durante dez anos para o ensinar a pintar. Como seriam aquelas executadas nas mais diversas geografias, viajou à volta do mundo durante vinte anos com o seu mordomo Smautf. Essas pinturas marinhas seriam depois transformadas em 500 puzzles. Para isso, contratou Gaspard Winckler. Os prazos deviam ser cumpridos à risca e as 750 peças de cada uma das 500 caixas deviam ser montadas com rigor, caso a caso, em cada duas semanas. Contudo…

Ler este livro é como encontrar novamente o gozo na inesgotável descrição dos romances oitocentistas, um humor franco na caracterização das personagens que começam invariavelmente a ser contadas pelo que trazem vestido ou pelos imensos objectos que as rodeiam.

Ler este livro é reencontrar Júlio Verne, se este estivesse sentado à mesa do café com Guy de Maupassant, Tchéchov ou Mário de Carvalho. Caso estes lessem em conjunto os livros de lendas e narrativas das «Mil e Uma Noites», de «Se Um Viajante Numa Noite de Inverno» de Italo Calvino ou as peripécias encerradas no «Manuscrito Encontrado em Saragoça» de Jan Potocki. Já para não falar na «Odisseia» de Homero ou nas «Metamorfoses» de Ovídio…

Sem dúvida, o prazer de ler mil histórias enquanto vão passando na parede branca as imagens dos cenários onde se situa a verdadeira origem do nosso universo.

Um prazer inesgotável que pode ser lido de trás para a frente ou em qualquer um dos sentidos idealizados!


jef, outubro 2025

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