Um labirinto consignado no interior de um mundo infinito. Um
mundo infinito consentido dentro de um labirinto desvendado. Através de uma
tradução árdua e magnífica de Pedro Tamen, eis o romance que George Perec edificou
durante nove anos. E como ele imaginou, a fachada de um prédio a ser removida e
todas as histórias ali contidas a poderem, finalmente, ser contadas em simultâneo.
Referimo-nos ao número 11 da imaginária rua de
Simon-Crubellier situada no 17.º bairro de Paris. Tem mais de oito pisos, incluindo
caves, corredores, escadas, esconsos, caixa de elevador, lojas e mansardas. 99
capítulos divididos por 6 partes (e um epílogo), com um mapa anexo para
localizar os novos e os velhos inquilinos, um substancial índice remissivo de
50 páginas para situar as referências citadas por mais casuísticas que
pareçam ao leitor desatento (e é preciso muita atenção!), uma tabela cronológica 1833-1975, um índice da
maior parte das histórias (mais de 100) contadas nas perto de 450 densas
páginas deste exaustivo Compêndio de História Comportamental de uma Cidade e do Mundo que a envolve.
Todo o livro é descrito como se um fotógrafo forense
analisasse o local dos acontecimentos onde as personagens parecem ficar paradas
no tempo, cristalizadas como num álbum de fotografia. Inicialmente, ali tudo
tem de ser descrito ao mais ínfimo pormenor, pois é no pormenor que pode esconder-se a
solução. A cor do sapato, o estado da manta, a história retratada numa pintura.
Depois, todas as personagens começam a mover-se e a sua história vai sendo contada por episódios, desde o nascimento do edifício em 1833 até a um certo
Verão que quase o faz tornar-se num deserto. Estamos no dia vinte e três de Junho de
mil novecentos e setenta e cinco e as oito horas da noite aproximam-se.
E por mais personagens que se multiplicam ao longo daquele
frontispício, existe uma certa competição velada, um negócio fechado, um jogo
escondido, infinito por irrealizável. Numa espécie de centro descentrado, está um britânico, riquíssimo e fleumático, Bartlebooth que resolve pintar 500 aguarelas
junto ao mar. Para isso, tem de contratar Valène durante dez anos para o
ensinar a pintar. Como seriam aquelas executadas nas mais diversas geografias,
viajou à volta do mundo durante vinte anos com o seu mordomo Smautf. Essas
pinturas marinhas seriam depois transformadas em 500 puzzles. Para isso,
contratou Gaspard Winckler. Os prazos deviam ser cumpridos à risca e as 750
peças de cada uma das 500 caixas deviam ser montadas com rigor, caso a caso, em cada duas semanas. Contudo…
Ler este livro é como encontrar novamente o gozo na
inesgotável descrição dos romances oitocentistas, um humor franco na
caracterização das personagens que começam invariavelmente a ser contadas pelo
que trazem vestido ou pelos imensos objectos que as rodeiam.
Ler este livro é reencontrar Júlio Verne, se este estivesse
sentado à mesa do café com Guy de Maupassant, Tchéchov ou Mário de Carvalho. Caso
estes lessem em conjunto os livros de lendas e narrativas das «Mil e Uma Noites»,
de «Se Um Viajante Numa Noite de Inverno» de Italo Calvino ou as peripécias
encerradas no «Manuscrito Encontrado em Saragoça» de Jan Potocki. Já para não
falar na «Odisseia» de Homero ou nas «Metamorfoses» de Ovídio…
Sem dúvida, o prazer de ler mil histórias enquanto vão passando na
parede branca as imagens dos cenários onde se situa a verdadeira origem do
nosso universo.
Um prazer inesgotável que pode ser lido de trás para a frente
ou em qualquer um dos sentidos idealizados!
jef, outubro 2025
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