segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Sobre o filme «Anora» de Sean Baker, 2024














Sempre que vejo filmes como este lembro-me de Frank Capra. Essa amabilidade moral (política) servida por grandes actores, diálogos rigorosos, sinceros e sucintos, tudo no interior de uma história que, aparentemente, não perde tempo com pormenores, antes prefere expô-los bem visíveis mas laterais, apenas oferecidos aos que olham os seus filmes com máxima atenção. Onde a maldade, se existe, resulta do fruto das circunstâncias e a sua desmontagem é o cerne da intriga.

Anora (ou Ani, como ela prefere ser chamada para distanciar-se das suas origens eslavas) é uma espécie de Cinderela (musculada e de topete) que trabalha num clube de acompanhamento sexual em Nova Iorque, cumprindo o seu trabalho com rigor e profissionalismo. Até que surge ali um quase adolescente, quase pueril, Ivan (Mark Eydelshteyn), filho-família russa de enorme poderio económico, pronto a divertir-se até ao limite da loucura e do esbanjamento. Até ao casamento nocturno naquelas capelas cor-de-rosas e iconoclastas de Las Vegas. O resto do filme é como se imagina e o espectador vai seguindo a trupe de “funcionários” e “solicitadores” que a mando da família de Ivan tenta resolver a questão em definitivo.

Mas o filme (que arrecadou a palma de ouro em Cannes) coloca-nos perante a força interior e a construção da personalidade fortíssima de Anora, edificada pela magnífica, extraordinária Mikey Madison, uma mulher que aos poucos comanda definitivamente o percurso da história e as peripécias humorísticas de uma incrível perseguição automóvel. Contudo, o que move Anora é mesmo o sonho proposto de uma vida amorosa ideal que ela, afinal, assumiu como realidade, mas que, mais tarde, vai substituir pela defesa da individualidade e da dignidade femininas, culminando com o assombroso diálogo final com Igor (Yura Borisov) que abre espaço para o desenlace final, pungente, silencioso e nevado, à boa maneira dos mais belos clássicos do cinema americano.

Um dos grandes filmes de 2024.

E prestaremos muita atenção à actriz Mikey Madison e ao realizador Sean Baker, a quem devemos outro filme inteligente, emocional e político: «The Florida Project» (2017).


jef, agosto 2024

«Anora» de Sean Baker. Com Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Paul Weissman, Lindsey Normington, Emily Weider, Luna Sofía Miranda, Yura Borisov, Vincent Radwinsky, Brittney Rodriguez, Sophia Carnabuci, Anton Bitter, Ella Rubin, Ross Brodar, Zoë Vnak, Vlad Mamai, Maria Tichinskaya, Ivy Wolk, Karren Karagulian, Vache Tovmasyan, Morgan Charlton, Nazar Khamis, Charles Jang, Lana Svidonovich. Argumento: Sean Baker. Produção: Sean Baker, Alex Coco, Samantha Quan. Fotografia: Drew Daniels. Decoração: Christopher Phelps. Guarda-roupa: Jocelyn Pierce. EUA, 2024, Cores, 139 min.

domingo, 10 de novembro de 2024

Sobre o livro «Estilhaços» de Bret Easton Ellis, Asa, 2023. Tradução de Elsa T.S. Vieira


 









Este é um romance desabrido. Sem paninhos quentes ou rodriguinhos que facilitem a vida ao leitor. Uma espécie de livro policial ou de suspense ou thriller que fica suspenso entre a realidade e a vocação literária de alterar a realidade para melhor a fixar, melhor, para a alterar e assim ficar mais compreensível, mais dura, ou mais ficcional.

Califórnia, Los Angeles, colégio Buckley, 1981. O finalista Bret Ellis tem 17 anos e anda a escrever o seu primeiro romance «Menos que Zero». Ele e os colegas vivem em grupo, numa "bolha", a amizade protege-os no conforto da abundância e na independência e distanciamento familiares. O dinheiro, o sexo e as drogas não parecem ser problema no interior do luxo e da luminosidade de Los Angeles. As cassetes com as novidades discográficas e os teatros exibindo no grande ecrã os êxitos cinematográficos fazem de banda sonora e banda visual para o dia a dia daqueles adolescentes que ainda não estão preparados para enfrentar a visão adulta do mundo ou perder a alheada inocência que teimam em praticar. De «Shining» de Stanley Kubrick (1980) a «Icehouse» (1981). Apenas a homossexualidade vai ficando, oculta mas usufruída, suspensa na moldura do quadro do privilégio de uma sociedade. Até que, no último ano de liceu, é transferido um novo aluno, misterioso e atraente, no mesmo momento em que dá alvíssaras a actividade criminosa de um grupo que se aproxima, rondando, com uma série tenebrosa de assassinatos.

Em «Estilhaços» não existe contemplações com as narrativas sobre o sexo, as drogas e os cadáveres doa animais, ou com as descrições pormenorizadas das cores, das roupas, dos ambientes, das mansões e piscinas particulares, da geografia da costa californiana. Também do horror. Verdade ou simulacro literário?

Um quase diário sobre a especulação artística numa atmosfera que talvez já tenhamos vislumbrado com os livros de Raymond Chandler. Ou com «Mulholland Drive» (David Lynch, 2021) ou «Era Uma Vez Em... Hollywood» (Quentin Tarantino, 2019). Só que neste "filme" existe uma nova definição para a literatura de entretenimento e horror.

Silêncio e Mentira e Torpor e Medo são os substantivos que suportam esta narrativa imparável com uma estrutura exegética construída em finíssima minúcia.

Quem não se sentir tocado por estes substantivos adjectivados e continuar a dormir descansado depois da leitura de «Estilhaços» de Bret Easton Ellis já terá vendido o coração ao diabo.


jef, novembro 2024

sábado, 9 de novembro de 2024

Sobre a peça «Macbeth - A Peça Escocesa» de Manuel Jerónimo, a partir de William Shakespeare. Boutique da Cultura, 2024


 




























Uma peça amaldiçoada, por feminista. Lady Macbeth é mais famosa e engenhosa que o próprio Macbeth. Macbeth, pasto de visões e dúvidas, de bruxedos e ambições alheias, bons presságios que se tornam maus agoiros por deficiente interpretação, ventres defuntos que dão à luz nados vivos. E, contudo, as florestas movem-se, assim diz Shakespeare, eternamente plagiado por Orson Welles (1948) ou Akira Kurosawa («O Trono de Sangue» 1957) . Ou por Manuel Jerónimo…

O problema é que, agora, quase toda a intriga (e sanguinárias facadas) se move por cima de um balcão de haut cuisine ou, mais correctamente, por baixo do citado balcão. Onde permanecem os cinco actores transferindo a ansiedade psicológica ou o desvario psicopata da tragédia para uma tresloucada comédia cumprida sob a nevrótica paranoia das hauts cuisines televisivas.

E como é excelente Manuel Jerónimo a avisar que os espectadores vão estar sob vigilância de diabólicos prenúncios e que não devem sequer mencionar esse nome proibido. E como a plateia fica a rodear de modo acolhedor, íntimo, quase cúmplice, o palco de toda a trágica manipulação.

E como os cinco actores cumprem sem parar, numa velocidade para além do cruzeiro, todos os vaticínios sanguinolentos tendo nas mãos apenas a sua perfeita veia cómica e meia dúzia de tachos e frigideiras, uma ou duas facas que parecem dezenas, um ou dois tomates, (um pepino, claro!) e meia dúzia de tartes de natas à boa maneira da ancestral comédia vaudeville de Hollywood.

A encenação, os elementos cenográficos, o diálogo e a transposição dos personagens de tragédia para comédia numa movimentação de cena radical feita em poucos metros quadrados, fazem daqueles actores como que extraordinárias marionetas, ao mesmo tempo suspensas e escondidas.

Um exemplo de como hoje em dia o teatro em Portugal se move por óptimas águas, claras, inteligentes e populares.


jef, 7 de novembro de 2024


«Macbeth - A Peça Escocesa» Texto e encenação: Manuel Jerónimo, a partir de William Shakespeare. Direcção Artística: João Borges de Oliveira. Com Ana Isabel Sousa (Bruxa(s) / Lady Macbeth), Bruno Realista (Banquo / Donalbain, filho mais novo de Duncan), David Correia (Macbeth), Fernanda Paulo (Duncan, Rei da Escócia / Assassino) e Gonçalo Sítima (Malcolm, filho mais velho de Duncan /Assassino). Cenografia: Silveira Cabral. Desenho de Luz e Operação Técnica: Tiago Santos. Produção: Boutique da Cultura. 75 minutos.