Talvez
o filme seja muito mais importante do que parece, mais importante do que a
polémica que parece existir sobre a origem de classe de Walter Salles (ou de Rubens
Paiva – pai). Também os burgueses se revoltaram contar as ditaduras, pela
liberdade e pela democracia. E todos têm o direito de construírem a sua arte com
base no que reside no seu passado e no seu coração, sem dogmas ou condescendências. Pelo que
consta, o conde Luchino Visconti não teve pudor em inaugurar um certo cinema “político”
com «Obsessão» (1943), «A Terra Treme» (1948) ou «Belíssima» (1951). E tendo neste momento Hollywood inaugurado um novo sistema para a nomeação dos filmes candidatos,
talvez seja hora de aproveitar a publicidade e a mega distribuição para o
cinema mundial repor alguma inteligência “social” perante a época perigosamente
imbecil que estamos a viver.
Burguesia à parte, existe um cuidado particular em separar as águas. Por um lado a alegria, despreocupada, colorida e carioca provocada pela habitual câmara tão familiar super 8, para depois entrar no cinzento-negro opressivo da ausência, da vigilância policial, da falta de respostas, das masmorras prisão política, no fundo da tristeza pela perseguição.
Para além da estética, do guarda-roupa, da banda-sonora, dos decores e cenários, das
obras de arte expostas e da luminosidade, um dos fulcros definitivos do filme. Sem contar com a assombrosa história de resistência e perseverança
da personagem Eunice Paiva (Fernanda Torres) no centro da odiosa ditadura
militar brasileira. Sem contar com o papel cativante de Selton Mello encarnando o perseguido Rubens Paiva. Sem contar com a representação de todas aquelas crianças.
Sem
contar, ainda, com Fernanda Torres e a brevíssima mas
colossal cena final de Fernanda Montenegro em frente do ecrã da televisão.
O cinema é feito principalmente de beleza e comoção.
Também e não tanto de denúncia, muito mais de consciência.
Que
o mundo volte a entrar no cinema para se rever a si próprio e conseguir talvez fazer
mea culpa.
jef,
janeiro 2025
«Ainda
Estou Aqui» de Walter Salles. Com Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton
Mello, Valentina Herszage, Maria Manoella, Bárbara Luz, Gabriela Carneiro da
Cunha, Luiza Kosovski, Marjorie Estiano, Guilherme Silveira, Antonio Saboia, Cora
Mora, Olívia Torres, Pri Helena, Humberto Carrão, Charles Fricks, Maeve
Jinkings, Luana Nastas, Isadora Ruppert. Argumento: Murilo Hauser e Heitor
Lorega, segundo o romance de Marcelo Rubens Paiva. Produção: Maria Carlota Bruno, Martine de
Clermont-Tonnerre, Rodrigo Teixeira. Fotografia: Adrian Teijido. Música: Warren
Ellis. Guarda-roupa: Cláudia Kopke. Brasil / França, 2024, Cores, 136 min.
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