Nada
de mais real sobre tudo o que se passa hoje sobre o planeta Terra. Um silêncio
talvez inadequado, uma expressão mal ouvida, uma entoação mais pronunciada, uma
palavra mal entendida. No fundo, Nathalie Sarraute escreve tudo sobre nada e
ainda lhe coloca por cima o véu subtil do humor, como se parafraseasse o grande
Rui Cardoso Martins: “o humor não aligeira, aprofunda”.
Dois
amigos de longa data encontram-se por acaso e sentem que têm alguma coisa a
esclarecer. Um deles não sabe bem como, o outro não sabe bem porquê. Como se
existisse uma substância indefinida e silenciosa a pairar sobre aquela relação.
Alguma centelha de superioridade manifestada numa recomendação de emprego,
algum toque de condescendência ou
soberba quando se exibe as palavras de Verlaine: “A vida está ali, simples e
tranquila!”.
Um
homem pensa que uma colaboradora terá ouvido certa conversa que ele terá tido
com um amigo, fazendo um esgar de incompreensão. Ou talvez, de desdém. Ora aí
está um problema grave que tem de ser resolvido. Que necessidade terá o outro
de fazer um juízo diferente, ou o direito de formular uma simples ideia diversa
sobre a ideia que ele exprimiu? Intolerância,
tolerância? É isso que ele terá de
esclarecer. Por ventura, com um duplo, ou seja, consigo próprio. Assim, ficamos
confortáveis no nosso cantinho, sem contraditório. Também assim ficaremos a
falar para as paredes. Sozinhos.
Nathalie
Sarraute é de uma subtileza atroz que a encenação de Carla Bolita expõe de
modo cru e fundamental ao juntar as duas peças em questão naquele cenário
despojado da inauguração de uma possível exposição de pintura. Aliás, aqueles
diálogos quase não precisariam de cenário. Apenas necessitam do abstracto
significante do vocábulo que está encerrado no levantar de uma sobrancelha,
num sorriso quase amarelo, numa entoação insinuante. Textos para grandes
actores que trabalham sem rede mas com a minúcia quase muda da poesia.
Todo
drama da humanidade, toda a comédia em que ela está enterrada numa simples palavra por
ouvir. Numa palavra por dizer.
26
de janeiro de 2025
«Tudo
A Que Se Chama Nada». Texto: uma adaptação de “Por tudo e por nada” e “Aqui
está ela” de Nathalie Sarraute. Tradução: Ricardo Marques e Carla Bolito. Encenação:
Carla Bolito. Com Álvaro Correia, Anabela Brígida, João Cabral, Marcello
Urgeghe. Cenografia: Carlos Bártolo. Figurinos: Ricardo Preto. Desenho de luz:
Daniel Worm. Efeito sonoro: Rui Dâmaso. Produção: Lorena Pirro Apoio SPA –
Fundo Cultural / Coprodução Estado Zero e Teatro São Luiz. 80 minutos.
Teatro
São Luiz.
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